No restaurante o jovem empresário de sucesso explica o sistema da prateleira entre descrições de feitos empresariais heróicos. Uma sala sem janelas, uma folha A4 em branco e um lápis. Dias, semanas, meses. Até a pessoa desistir e sair da empresa. Isto tudo acontece neste momento a uma mulher, funcionária numa colmeia de sonho de um amigo do jovem capitalista. Tento por todos os meios perceber se condena ou aplaude o método tão prosaico de atirar pessoas para a alheta, mas não chego a nenhuma conclusão satisfatória, embora desconfie sempre de alguém que conte histórias de um amigo. É como as anedotas, acontece sempre ao outro. Depois há o resto, neve na Damaia, o Bin Laden morto, a crise. A sacana da crise. Ao chegar à empresa percebo que uma colega grávida de cinco meses foi dispensada com um dia de antecedência. À noite atiro-me para um taxi, estou desalinhado, cansaço a escorrer pela fachada, os miolos a misturem-se às vértebras que já estão num estado tal que pouco falta para tocarem acordeão. O taxista tem 130 anos, mais valia ter apanhado uma caleche. Pela janela vejo o ensaio da marcha, uma conspiração na avenida de quatro chuis montados em segways, as boas pessoas a distribuírem comida aos sem abrigo à porta da igreja. Saio de propósito do taxi mais longe para poder andar um pouco, e penso na tempestade de há uns dias, nas discussões políticas madrugada fora que sempre vão dando os seus frutos, em ti, nos almoços em que não digo o que devia, sílabas e imagens temperadas a acompanhar com tomate e cebola e o Verão aqui tão perto. Ah, ainda falta a primeira viagem transatlântica de zeppelin, da Alemanha ao Brasil em seis dias. Mas isso fica para depois.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES