Esbarramos numa festa e falamos de coisas banais. O malefício do tabaco e que desejos percorremos como forma de matar o tempo nas respectivas vidas. Depois combinamos encontro na mesma noite noutra festa. No balcão do Lux com duas imperiais na mão fazemos contas aos anos da amizade. Parece que já contamos com vinte e um em cima. Ou melhor, vinte, porque no primeiro ano lutávamos em campos opostos. Segundo o meu amigo, a nossa primeira memória é ele a tentar desmanchar o meu focinho. Faço um esforço de memória hercúleo e não recordo a situação. Mas ele desfia os pormenores, foi uma coisa de grupo, nem hoje sabe o motivo para ter feito aquilo. Cercaram-me e parece que eram muitos. A ideia era darem-me uma sova. Não recordo a situação, nem como é que escapei vivo. Faz um ar melancólico e diz que ainda hoje recorda com nitidez aquele mal fadado dia e que é das situações na sua vida que mais lamenta. Sou apanhado de surpresa com a declaração, fico a abanar o copo no ar e a pensar que para alguém que tem como principal característica uma memória acima da média, não recordar esta quase cena de pancadaria não deixa de ser insólito. Pergunto-lhe o motivo, por que desejava ele bater-me e a sua resposta faz-me perceber os vinte anos seguintes e todas as batalhas onde entrei, levei no focinho, desfiz uns quantos, espetei bandeiras, sofri nódoas negras, perdi guerras, conquistei territórios: parece que não me calo.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES