Quarta-feira, 11 de Maio de 2011

 

 

À hora de almoço o centro comercial está à pinha. Aborda-me timidamente enquanto caminho em direcção aos lavabos. Poderia enviar uma mensagem?, pergunta, ao que respondo de forma afirmativa, desconcertado, não percebendo o pedido de forma clara. Entrega-me o telemóvel e fico ainda mais desorientado. Ainda ponderei que não tivesse saldo e estivesse a pedir para enviar uma mensagem urgente. Quando fico com o telemóvel cor-de-rosa de teclas minúsculas nas mãos percorrem-me todos os mitos urbanos pela espinha abaixo. Espera lá, é assim que desaparecem pessoas e roubam rins na forma gentil dos talhantes. Quantos emails já leste tu na tua vida a garantir que raptam pessoas no Colombo e que uma criança foi encontrada de cabelo à escovinha e transvestida na casa-de-banho do Cascais shopping? E o marido que desapareceu na sala de embarque da Portela? Mas tu estás parvo, pá? Vejo as mãos dela a tremer e as minhas suspeitas aumentam. Meu grande estúpido. Vejamos. Uma mulher bonita e trémula em aflição, um pedido que ninguém diz que não, um sítio público apinhado e simultaneamente cheio de pessoas indiferentes à vida alheia. Começo a pensar se é possível viver sem um rim. Sim, para alguma coisa existe a hemodiálise. E dois? Alguém sobrevive sem dois rins? As listas de espera são longas? E se rejeitar o transplante? Discretamente olho por cima do meu ombro direito mas não vejo ninguém suspeito. Idiota. Qualquer pessoa que esteja desconfiada olha para trás, se houver alguém suspeito estará em frente. Ou à esquerda? Espera, isto tem uma varanda. Raios. À minha frente tenho a mulher a tremer das mãos e de olhar nervoso. A curiosidade matou o gato. Acabo por perguntar o que deseja que escreva. Só uma frase

 

Serei sempre tua beijos do teu tesouro

 

Escrevo a mensagem e devolvo-lhe o telemóvel. Desculpo-me por a frase não ter um ponto final, não encontrei a tecla, e com a sua resposta percebo que a mensagem é para um homem. Agradece-me e pede desculpa efusivamente por ter incomodado. Desaparece como apareceu, no meio da multidão. Pego nos rins intactos e vou à minha vida.



publicado por afonso ferreira às 01:07 | link do post | comentar

5 comentários:
De dg a 11 de Maio de 2011 às 10:16
acho que também teria tremido e teria no final perguntado 'porquê?'! excelente. abraço, dg


De Cristina a 11 de Maio de 2011 às 13:02
Grande filme!


De merenwen a 12 de Maio de 2011 às 21:59
E não perguntas-te o porquê?! Grande resistência! :)


De afonso ferreira a 12 de Maio de 2011 às 22:21
eu sei que não tenho explicação.


De geriatriaaminhavida a 13 de Maio de 2011 às 07:27
Desculpe lá Afonso, mas será que a senhora não iria fazer uma loucura...do genero acabar com a vida?
Parece-me uma mensagem dedespedida.
Bem, devo de estar a fazer um filme!
Boa semana


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