À hora de almoço o centro comercial está à pinha. Aborda-me timidamente enquanto caminho em direcção aos lavabos. Poderia enviar uma mensagem?, pergunta, ao que respondo de forma afirmativa, desconcertado, não percebendo o pedido de forma clara. Entrega-me o telemóvel e fico ainda mais desorientado. Ainda ponderei que não tivesse saldo e estivesse a pedir para enviar uma mensagem urgente. Quando fico com o telemóvel cor-de-rosa de teclas minúsculas nas mãos percorrem-me todos os mitos urbanos pela espinha abaixo. Espera lá, é assim que desaparecem pessoas e roubam rins na forma gentil dos talhantes. Quantos emails já leste tu na tua vida a garantir que raptam pessoas no Colombo e que uma criança foi encontrada de cabelo à escovinha e transvestida na casa-de-banho do Cascais shopping? E o marido que desapareceu na sala de embarque da Portela? Mas tu estás parvo, pá? Vejo as mãos dela a tremer e as minhas suspeitas aumentam. Meu grande estúpido. Vejamos. Uma mulher bonita e trémula em aflição, um pedido que ninguém diz que não, um sítio público apinhado e simultaneamente cheio de pessoas indiferentes à vida alheia. Começo a pensar se é possível viver sem um rim. Sim, para alguma coisa existe a hemodiálise. E dois? Alguém sobrevive sem dois rins? As listas de espera são longas? E se rejeitar o transplante? Discretamente olho por cima do meu ombro direito mas não vejo ninguém suspeito. Idiota. Qualquer pessoa que esteja desconfiada olha para trás, se houver alguém suspeito estará em frente. Ou à esquerda? Espera, isto tem uma varanda. Raios. À minha frente tenho a mulher a tremer das mãos e de olhar nervoso. A curiosidade matou o gato. Acabo por perguntar o que deseja que escreva. Só uma frase
Serei sempre tua beijos do teu tesouro
Escrevo a mensagem e devolvo-lhe o telemóvel. Desculpo-me por a frase não ter um ponto final, não encontrei a tecla, e com a sua resposta percebo que a mensagem é para um homem. Agradece-me e pede desculpa efusivamente por ter incomodado. Desaparece como apareceu, no meio da multidão. Pego nos rins intactos e vou à minha vida.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES