Decidi fazer uma pausa e saí da gaiola em direcção ao jardim. Abandonei o corpo num banco e fechei os olhos por uns segundos para espantar o cansaço dos dias. Sinto um bater de asas perto de mim e é quando o vejo – castanho, pequeno, impávido. Faço uma aposta comigo próprio, se serei capaz de lhe pegar antes que esvoace em direcção ao céu. Vou de mansinho, rastejo, dou pequenos estalinhos com a língua para o sossegar e eis que sou recompensado com um corpo quente entre as mãos. Asas, bico, olhos, coração e tripas. Deixa-se pegar sem queixumes. Regresso à caixa-forte com um sorriso de orelha a orelha, mostro aos outros o animal aninhado, armo-me em parvo a mostrar a minha habilidade. Quando volto ao jardim para o deixar partir lembro-me do outro pássaro num passeio pelo norte há três décadas. A montanha numa tarde de calor indolente e a capela branca a espreitar no cimo do monte. Quando alcançamos a porta principal encontrámos o cadáver. Deitado de lado, as duas asas juntas, a cabeça na laje. Os adultos olharam para o pequeno corpo ainda quente e suspiraram. Parece que fez de propósito, desejou morrer à porta de Deus. Foi com o pássaro moribundo que intuí aos cinco anos que seria sempre agnóstico.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES