Uma vez em casa de Botero, misturei selvaticamente erva com genebra, e enlouqueci. Um dos negros, que por acaso era parente de Botero, um colombiano que nunca perdia o humor, perdeu-o comigo. Recomendou-me que deixasse de beber. Mantive por uns minutos a compostura, algo assustado pela repentina seriedade do meu amigo colombiano. Voltei a perder essa compostura quando ouvi uma senhora dissertar sobre um livro que falava de lojas cor de canela e fora escrito por um judeu assassinado por um oficial nazi. Ouvir isto provocou-me um riso frouxo, o riso do ignorante que não só não percebe nada como, ainda por cima, julga, por causa da pujança do verde na sua retina de drogadozinho ocasional, que está na selva mais pequena do mundo e que esse mundo é o reino da abundância e que aí a vida só existe para as folhas. Abismado em semelhante delírio, não é estranho que o meu riso também o fosse e que toda a gente me olhasse reprovadamente e com enorme desconfiança. Decidi afastar-me dos seus olhares e fui dançar. Fi-lo com grande arrojo e pisando várias pessoas e quando me cansei, entrei na casa de banho, roubei o pente, deixei a marca no livro de Tchékov, proclamei o meu desprezo mais absoluto por qualquer tendência artística e acabei por ser convidado a abandonar a casa dado o meu estado de extrema embriaguez.
– Ao menos eu sou uma folha que está viva – disse-lhes à maneira de enigmático protesto pela expulsão.
– Só te falta uma pistola para seres Goebbels a disparar contra a cultura – disse-me, muito agastado, o meu amigo colombiano.
Despediram-me da forma mais vergonhosa. Com um monumental pontapé no cu. Caído no patamar e não querendo aceitar que fora humilhado, rocei com os meus dedos o bolso onde guardara o despojo de Botero, o meu grande troféu: o humilde pente roubado. (...)
Longe de Veracruz, Enrique Vila-Matas
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES