Entra no velho teatro, passos largos, apressados, atravessa os corredores decrépitos, a patine a troçar dela, adivinha de que cor as paredes estão pintadas. Agora não tem tempo para adivinhas de estuque moribundo. Está atrasada, o ensaio já começou. Espalha-se ao comprido nos três degraus na entrada do camarim. Levanta-se, apanha os bocados de si mesma espalhados, atarraxa a perna esquerda com esforço, troca a roupa que traz pelo vestido, ata o laço nas costas, penteia o cabelo, sufoca os caracóis com ganchos, pinta-se como uma boneca espanhola e assim já a reconhecem: aqui está a Estela. Lá vai ela a correr para o palco.
– Cuidado com os degraus, Estela!
Cena III. Estela morreu. Os pulmões chiam, o coração chocalha o sangue, as pestanas abanam, o fígado dói, e, no entanto, está morta. Estela, ouve a música, é a tua preferida. Não queres dançar? Estela lê o telegrama com as más notícias mas não reage, Estela olha para o amante a soluçar, recebe os seus abraços mas nada sente. O urso do tambor parado com as baquetas no ar, o encenador a tirar a pala do olho esquerdo para ver melhor, os actores a aproximarem-se no palco e todos a gritar em coro:
– Esteeeelaaa!
Estela segura uma pequena caixa de madeira onde está o seu coração mas perdeu a chave. Olha perplexa para a mulher à sua frente de vestido, cabelo apanhado, pintada como um palhaço.
– Mas quem é esta? Quem é esta dupla de mim? pergunta.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES