Ao P., a minha terra.
I. Crucificação
Seguimos em passo ligeiro, paralelos ao rio. Falamos amenamente enquanto marchamos; quando decidimos correr, estabelecendo metas e tempos, fecho-me em silêncio, o vento no rosto e uma sensação estranha percorre-me, como se um cão corre-se atrás, um animal ou algo que me vai caçar. Um cão sem rosto, mas na estrada não há nada – sol ao alto, o espelho de água sereno, namorados aqui e ali a salpicar a paisagem. Na margem, os navios de guerra ancorados, não é fácil chegar ao rio. Medidas de segurança. Estarei eu em segurança? Por vezes parece uma matilha. Recomeço a correr e volto a sentir o animal. No fundo das costas, no pescoço, nos músculos dos ombros. Dois dias depois, no mesmo rio mas muitos quilómetros acima, o animal desaparece de vez. A marginal em polvorosa, obras profundas, desviam os esgotos do rio para lugar mais apropriado. Subitamente surgem animais que ninguém avistava há décadas – andorinhas-do-mar-anãs, corvos-marinhos-de-faces-brancas, gaivotas-argêntea, gaivinas-pretas, garças-reais. Surgem no rio, na marginal, na estrada, nas esplanadas. As pessoas assistem ao fenómeno como se de um milagre se tratasse. Mas não foi deus, foram os esgotos.
II. Morte
Destino – Sul. Atravessar a cidade, um barco, voltar à terra. O coreto do jardim saúda-me, temos afeição antiga entre nós. Ao fundo, depois das árvores, a escola de música. Palco da mais hilariante entrevista da minha vida, o chefe da orquestra sinfónica e eu, duas décadas volvidas, a minha memória intacta como se fosse hoje, a discutirmos instrumentos, e, sem sabermos, a preparar-me para a vida. Ao almoço ouço-te como se fosse a última vez; mais tarde, sentados a ler cartas, invejo-te o G, a forma perfeita como o desenhas, nunca o disse mas passei a vida a admirar a tua caligrafia. A caligrafia mais bela de todas. Percorri a infância a olhar para páginas escritas pelo teu punho e tenho um desgosto por nunca ter atingido a perfeição das tuas letras. Vejo-te doente e debilitado, tão fraco, e ainda assim pareces-me novo. Olho para ti como se ao espelho estivesse. Quando me despeço e fecho a porta, confirmo uma vez e outra e outra, se a porta está bem fechada, como se quisesse guardar algo para sempre.
III. Ressurreição
Quando nos reunimos seguimos pela estrada sem destino certo. Na praia o mar está revolto, o vento corre de feição, mas há algo de perfeito no facto de aqui estarmos. Tens uma maneira única de brincar com as palavras. Irritas muita gente com essa particularidade, não és decifrável à partida. É preciso conhecer-te bem para apreciar a ironia, o sarcasmo, a inteligência. Quando tudo parece colapsar ao meu redor, és tábua de salvação. Sempre foste e estou reconhecido por isso. És a minha terra firme, mesmo nas águas mais turvas. Encerras em ti a vontade de ouvir, dom raro. E quando é preciso ensinas lições duras, já as recebi. Ouves-me como sempre, desfio problemas sem solução à vista. Ouves tudo e no fim agarras-me o ombro, sacodes-me, o sinal para prestar atenção, e dizes, quase murmúrio – Que deus os proteja a todos. Desfaz-se tudo em partículas, as palavras amolgadas, contaminamos tudo às gargalhadas, fica o assunto encerrado – batalha perdida, mas não a guerra – enquanto pedimos mais uma garrafa e os navios avistam-se ao longe. Uma raposa surge no nosso caminho, como no Principezinho, relembrando o sentido de cativar e de necessidade. Desaparece nas escarpas em direcção ao mar. Debatemos se é possível domesticar uma raposa e não chegamos a uma conclusão. Concebemos planos – de viagens, reencontrar amigos no sul, de fugas imperativas. No segundo barco permanecemos em silêncio até atracar no estreito esmagados pelo dia e pela beleza do que nos rodeia. Mais tarde, atravessamos outras praias e chegamos ao casino vindos do fim do dia, néons e roletas, fotografo à socapa enquanto tentamos apostar as horas num sonho etílico. A roleta assobia-me, a noite caí, quando seguimos viagem é o cheiro da maré e dos dias longos que transportamos connosco.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES