Um dia de cegos, é o que vos digo. De manhã uma seca tremenda para fazer um exame oftalmológico no hospital que me deixou cegueta a esfregar os olhos até à noite. Depois o cego a fazer compras. Um belo homem, olhos de um verde profundo, bem vestido, pose de almirante em terra. Ao meu lado a fazer compras para a despensa, tudo em versão homem-solitário – uma sopa, embalagem de carne para um, garrafa de vinho. A marcar o código do multibanco e eu a admirar a coragem, a calma e a força. Aquele homem merecia uma mulher-actriz-de-cinema ao lado, nada menos que isso. Eu que passei uma infância aterradora a pensar que iria ser cego em adulto, não posso ver um que fico fascinado, ajudo a atravessar estradas, carrego sacos, faço conversa. E depois à noite, já a madrugada a bater nas janelas, encontro outro tipo de cegueira – a do cego que não quer ver, o pior de todos.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES