Quarta-feira, 3 de Fevereiro de 2010

 

 

Quarto 702. Na varanda o homem de tronco nu à espera com dois flutes de champanhe. Não trocamos palavras. Aceito o copo. Olho a cidade. A besta. Como amo esta cidade hoje. As luzes aos nossos pés. Respiro o ar em golfadas. Cheira a infinito. Trago a bebida de rajada e estendo o copo vazio sem olhar para o homem. Sinto o copo novamente cheio na mão. Dou mais um golo.

– Despe-te.

Utilizo novamente a voz baixa, quase um sussurro, mas desta vez ligeiramente ríspida. É uma ordem. Eu pago. Tu despes. Simples. O homem entra no quarto. Ouço o som das roupas a caírem no chão nas minhas costas. Espero uns segundos. Fecho os olhos. Respiro a cidade mais uma vez. Entro no quarto. O homem está nu, deitado na cama. Por momentos não sinto nada. Vazio. Fico apenas parado a contemplar. Não sinto emoções e não as transmito. Quero que ele saiba quem manda. Poder.

– Fecha as janelas e corre as cortinas.

Sento-me numa poltrona e vejo-o a levantar-se da cama como um gato. Mexe-se lentamente, como se toda a acção decorresse em câmara lenta. Atravessa o quarto e fecha a janela suavemente. Corre as cortinas e fica de pé como se esperasse novas ordens. Tem um olhar tranquilo e por momentos apetece-me humilhar, apetece-me que rasteje. Que tenha medo. A sua tranquilidade perturba-me.

O homem torna a encher o meu copo. Abro o fecho das calças e olho-o com crueza. Acendo um cigarro, deslizo ligeiramente na poltrona. Fecho os olhos. Sinto-o a ajoelhar-se. Antevejo o prazer. É por isto que aguento esta merda toda. Estou no helicóptero a contemplar o monstro de betão, cabos eléctricos, nuvens, os milhões lá em baixo no asfalto a escaldar. A cidade a ferver, imensa, infinita. Fiz todos os pactos com o diabo, e agora, aqui estou, a sobrevoar a megalópolis. Dos filhos-da-puta que hei-de vencer, que hão-de aprender a respeitar-me. Lá em cima tudo faz sentido. Deus não me abandonou. Percebo as linhas mestras, o grande plano, sinistro como a cidade Dele. Sinto algo frio na nuca e as palavras

– Mexe-te um milímetro que seja, cabrão, e este quarto é a última coisa que vês na vida.

Abro os olhos e tudo permanece igual. O quarto, a cama, as cortinas fechadas, a luz suave quebrada pelo abajur, o quadro com a pintura rupestre, a jarra com as flores, o seu rosto sereno. A única diferença era o frio. O frio que sinto por cima do meu olho esquerdo. Incomodativo. Gélido. Tento encontrar as palavras certas no tom adequado à situação

– Isto faz parte do serviço?

Quando pronuncio a última sílaba sinto imediatamente que as minhas palavras contaminaram o ar, que se torna rarefeito, os meus pulmões começam a fechar. A luz parece-me ficar mais fraca. Deixo de sentir o frio e isso alivia-me momentaneamente. Uma pancada seca, vigorosa, sem hesitações, de quem sabe o que está a fazer, acerta-me na cabeça e foi quanto bastou para perder de vez o ar. Abram a janela, que se lixe o crime violento. A dor faz com que deixe de ouvir, um zumbido ensurdecedor preenche todos os recantos da minha cabeça. O zumbido preenche o quarto todo, do chão ao tecto, o meu corpo encolhe-se, não resta espaço para ele. Não sei se perdi os sentidos, quando o zumbido atenua o homem está vestido, sentado na cama. Onde antes sentia frio agora há calor. Um calor morno e húmido que alastra da minha têmpora e escorrega pela minha face. Desliza pelo meu olho, pela barba que está áspera. Sinto a face morna e repuxada pela fita adesiva. Não consigo mexer a boca nem o corpo que sinto pesado e morno. Não sinto o ar, respiro com dificuldade. O homem está imóvel, a arma está pousada ao seu lado. O homem espera. Percebo que continuo com a braguilha aberta.

 

 

(cont.)



publicado por afonso ferreira às 16:05 | link do post | comentar

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