Combinei no Nicola por ser um dos meus cafés preferidos. Resistiu ao tempo e mantém a dignidade. Parece-me apropriado. Estou na mesa do costume, duas à direita do
BARBOSA DV BOCAGE 1765 - 1805
à espera com um café à frente do nariz. A caminho do Nicola vi o homem-elefante que agora já tem dois olhos, nariz e boca, mas continua sentado no mesmo degrau. O velhinho que apregoava o apocalipse foi substituído por uma carrinha ambulante com morangos. Deus foi trocado por fruta; o megafone por uma rapariga bonita de avental. Passam dez minutos da hora combinada, o céu está de chumbo. Terei chapéu-de-chuva? Não, ficou em casa para não se estragar. Talvez chegues a escorrer chuva se isto não ficar de feição. O Bocage faz-me companhia enquanto espero. Compreendemos bem as contas um do outro, também teve o Pina Manique a chatear, para além da inquisição, e um ano e meio preso nos calabouços, e nem assim deixou de fazer manguitos ao mundo e contar piadas aqui, aqui onde estou agora a olhar pela janela com o café a arrefecer. E o que chove? Parece noite. Peço outro café para abreviar a espera e viro novamente a ampulheta.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES