As ordens são expressas no painel à porta. Não se pode fumar nem comer, telemóveis nem vê-los. À partida seria de dar meia volta e desandar dali para fora, mas o bilhete está comprado, bebi demasiada sangria de manga ao almoço e há doze anos que estou para vir aqui. É hoje o dia. Estendo o bilhete como uma menina bem comportada e mergulho na escuridão, na luz azulada filtrada pelas toneladas de água e caminho para o aquário principal. O meu companheiro vai desfilando o nome dos peixes – aqui vai um tubarão, olha uma raia, um que já não me lembro do nome, este parece pacífico mas aquela cauda não é para brincadeiras. Mas, por cima de todos os peixes, quase à superfície, pairando como o astro-rei dos oceanos, obrigando-me a esticar o pescoço, está ele, imponente, gigante – o peixe-lua. Um colosso, ofusca tudo à volta. Olho para o peixe e penso porque é que me afastei tanto do mar, eu que nasci com umas barbatanas nos pés e umas braçadeiras para não morrer na fúria das ondas. Eu, que adormecia a ouvir o mar a rebentar nas rochas numa casa onde amarravam os barcos nos pilares para não fugirem durante a noite. O peixe-lua desceu do alto do aquário, devagar, majestoso, e veio cumprimentar-me. Soube-me a perdão, compaixão. Prometi-lhe amanhã visitar o mar da minha infância.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES