A escolha do primeiro local aconteceu naturalmente, o evento real que originou tudo o que escrevi mais tarde teve lugar efectivamente no espaço junto ao rio em frente ao edifício. Ditou o destino que fosse um edifício emblemático que sempre me intrigou, mas que agora, depois de tardes e tardes a olhar para ele, a fotografar, a descrever cada elemento arquitectónico, cada falha e tijolo, assemelha-se a um colosso. Um prodígio centenário, com um pé direito de dezenas de metros, maquinaria, ferro, vigas, janelas até ao céu. É tudo isto e ainda não estou satisfeito, continuo a desconfiar que ainda não o captei devidamente. O segundo local, é na realidade um não-local. Um ground zero à espera da concretização e vontade. Era para ter sido desejo, e é nisso que penso quando contemplo tantas vezes o terreno amplo e despojado, mas isso talvez seja por a minha memória para sempre associar a ti e ao escritório que vejo do local-nada. Enquanto os homens não decidiam os seus desejos, vieram máquinas que alcatroaram a terra e um stand de carros em segunda mão realiza negócio em tempos de crise numa fragilidade comovente. Quando permaneço no gradeamento a olhar para o stand é nisso que penso – fragilidade, desejo, inquietação. No meu lugar deveria estar antes matéria diferente – betão e vidro até ao quarto de deus, uma torre que escalasse o tempo. Mas os carros brancos continuam alinhados à mercê dos compradores ávidos de pechinchas, perdidos e indiferentes às causas maiores. Esta semana visitei o local e vi maquinas novas a triturar o solo, a esgravatar a paisagem rumo ao subsolo cheio de ossadas humanas e restos do terramoto. Um dia, tudo será diferente, deixarei de aqui vir, tudo estará escrito há muito, o escritório de painéis de carvalho terá desaparecido também, a nossa conversa será um sonho liquefeito, e em vez de fragilidade encontrar-se-á modernidade e aprumo em forma de edifício, mas isso será outra história.
a minha língua é a pátria portuguesa
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grandes crimes sem consequência
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