Estamos na marginal, o carro segue descontrolado no asfalto. Passamos vários semáforos vermelhos. Instintivamente travo, acto involuntário, no tapete. Gesto inútil, a cidade passa veloz pelas janelas, o condutor não hesita um segundo. O carro é blindado, nem pensar abrir a janela. Sinto que não respiro, é imperativo respirar. A cada cruzamento em que o carro não abranda os meus pulmões sofrem. Tiro a gravata e guardo-a no bolso. O condutor é um negro de pele de ébano, o qual não cheguei a ver a cara. No banco de trás só lhe vejo a nuca. Tento vislumbrar o seu rosto no espelho retrovisor mas, do ângulo em que estou sentado, a única coisa que vejo é a pala do seu boné. Tenho de lhe ver o rosto. Isso vai tranquilizar-me.
– Se o suicídio o tentar não tem de pensar muito não, é só parar em qualquer cruzamento da cidade e esperar pelo primeiro malandro.
Diz o gajo com sorriso esperto. Sorrio, tento parecer sereno, nunca perder o controlo, nunca, e penso que esta megalópole é simultaneamente o inferno e o céu no asfalto, no mar, nas avenidas e nos arranha-céus. Há umas horas atrás voava, e, por instantes, deixei de ouvir o barulho das hélices, deixei de pensar em tudo e vi a cidade gigantesca. O monstro de betão sob o sol escarninho, duro. E por isso belo. Obra de Deus. Um Deus maior, tão grande como a cidade, senão mais.
– Este vai ser o seu melhor cartão postal do Brasil.
Sussurra ao meu ouvido, insinuante, enquanto abre uma garrafa de champanhe encontrada no minibar da limusina. Os dentes alvos sobressaem no escuro. As mãos reluzem sob a luz incandescente do minibar. Por momentos acho-o perfeitamente patético. Novo demais. Quase repulsivo. Náusea. Estende-me o copo. Aceito a bebida e olho-o nos olhos. Brindamos e o desejo vence novamente. Decido beber de uma assentada e estendo-lhe o copo para que o encha novamente. Não perder o controlo. Olho novamente para o condutor. É imperativo ver-lhe a face.
O carro abranda, vira à direita, novamente à direita e depois à esquerda. Depois outra rua e outra. Perco o rasto ao caminho seguido. Despejo o champanhe pela goela abaixo, sinto-me mais forte à medida que o carro perde velocidade. O carro pára em frente ao hotel. Luzes, carros, pessoas. O átrio excessivamente iluminado. Faço-lhe sinal para que saia e trate de tudo.
– O melhor quarto. Que levem champanhe. Gelado… Nada de cartões.
Digo isto propositadamente com voz suave mas com autoridade. A experiência diz-me que é a melhor forma de adquirir respeito. Controlo. Voz suave mas que não admite réplica. Eficaz. Uma ordem bondosa mas cirúrgica que não pode ser desrespeitada. Era assim que tratava as pessoas no Ministério. Devido a isso tinha conquistado uma bolha de oxigénio. Sim, claro, sabia que nas minhas costas, em cada vernissage, reunião, cada evento protocolar havia cochichos, mal decência, escárnio. Mas não à minha frente. E isso era quanto bastava. Era quanto bastava. Continuo sem ver o rosto do condutor. Encho novamente o copo mas desta vez dou pequenos golos, beberico como uma senhora de idade. Com suavidade. Estendo o braço por cima do banco, abro e fecho a mão, descomprimo as costas e acendo um cigarro. Abro por fim a janela. O crime que vá para o raio que o parta. Aspiro o alcatrão, o fedor de um dia da cidade, sinto o calor tépido, as luzes que me ferem os olhos como agulhas.
(cont.)
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
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