I. O Circo
Passamos pelo pátio cheio de ruidosos convivas, contornamos a grande tenda e descemos à cave que parece um poço grande. Cumprimento a dj sereia, percorro o espaço com o olhar. Bar ao fundo, mesas e cadeiras e pessoas a estrangularem-se com álcool, estantes com livros e segredos e uma espécie de tanque estranho de pedra que não descodifico para o que serviu em tempos. Fazemos do tanque poleiro para a conversa e falamos da guerra, do fiscal Freitas, de projectos, do futuro, e principalmente da nossa consternação e desilusão perante o presente. Da impotência perante as circunstâncias. Dissecamos o estranho momento – enquanto a rapariga que finge não perceber que não desperta interesse envia mais uma mensagem para o telemóvel, enquanto o homem que afinal nada tinha para dar fugiu em direcção ao inferno – e decretamos que assim não vale a pena viver. Pedimos o cardápio e encomendamos alguns malabaristas, dois cuspidores de fogo, cinco bailarinas de can can, um domador e três leões. Temos de fazer amigos novos e esta noite parece-me um bom começo.
II. O Acidente
Atravessamos a cidade, percorremos a grande praça e esperamos pela luz verde a caminho do cinema. Tu falas, e eu olho para ti e para a avenida e para o trânsito e o carro que passa por nós que não vai conseguir parar. Eu não tenho tempo nem mais acção do que segurar o teu braço quando o grande estrondo acontece. Os dois carros enfaixados numa relação esquizofrénica e desigual de culpas. Esquecemos tudo o que dissemos e ficamos a olhar para os animais feridos, a chapa a gemer, os motores ainda quentes. Ficaste com uma dor de cabeça monumental e eu a pensar que é tão fácil morrer. Disseste-me, quando tudo o que tinha dentro de mim era água, que sempre pensaras que era de aço inox e tive vontade de te mostrar isto – o acidente na avenida, a chapa paralítica, os destroços que ficam depois do choque. O que é aço inox no momento seguinte pode ser papel manteiga. Nada é imutável.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES