Três dias. Três estaporados dias desde o momento em que percebi o deadline a apertar e a entrega do trabalho à mão de semear. No primeiro dia pensei, é impossível, vou enviar um email a explicar, não consegui, troquei os prazos, falta de atenção, mea culpa, nada tenho para oferecer. Mas depois o orgulho falou mais alto, e afinal não eram três mas quatro, quatro dias, inteiros, tanta hora para trabalhar. E desatei a escrever, dez mil palavras, tanta coisa, até sonhei com a história. Aeroportos, salas de embarque, o homem que enviava postais, casinos, roletas, as ilhas, o pé a gangrenar, o desespero. Dormia um par de horas e acordava para escrever, obliterei almoços e jantares, a despejar iogurtes pela goela a enganar a fome. Comprei cigarrilhas para desfazer o stress em baforadas e não fumar maços e maços de enfiada. Não resultou. Já foi sorte não ter deitado mão a uma garrafa de gin. E depois, já na meta final, os stresses normais, ler e reler, e ainda cumprir presenças em eventos sociais inadiáveis, resolver problemas, enviar telegramas, olhar pela janela, encostar o cansaço no fresco da mesa de mármore. No fim, corre tudo a meu favor, é sábado, e à última da hora encontro um sítio que me resolve os últimos engates, ao acaso entro na loja-milagre, tudo é possível, são simpáticos, resolvem problemas, ainda dão conselhos valiosos e nem sequer falam português. Corro, Lisboa fora, corrro, corro e corro, e chego aos correios a dez minutos de encerrarem. Tudo a meu favor. Espero o tempo devido, encontro amigos, começo a respirar finalmente. Quatro dias, quatro dias disto, mas aqui estou, tudo pronto a despachar para o outro lado do mundo, dez mil palavras alinhavadas, tudo arrumado, paginado em folhas A4, prontas a viajar de avião e a chegarem primeiro que a minha cansada pessoa. E é neste momento, em que o quadro electrónico anuncia o número da minha senha, em que faço tenção de avançar, em que repiro fundo pela primeira vez em quatro dias, que a mulher surge no centro do palco a chorar desesperada e diz – Ele morreu.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES