Quando parámos no semáforo ela entrou pela janela, não mais de um palmo de abertura, amarela, a minha cor preferida, e tinha umas longas asas. Entrou, rodopiou, voltou atrás, tocou-me na face esquerda, e voou para fora do carro, pela mesma nesga da janela, no preciso momento em que o sinal passou a verde, desaparecendo na copa das árvores da avenida. Um momento poético, perfeito, circular, e que arriscava a mais baixa das probabilidades de ocorrer, não fossem os meus olhos e rosto testemunhas. É nestes momentos perfeitos para nos invadirem pensamentos mais altos que constatamos o quão destrambelhados estamos quando, em vez disso, o que nos saí é um a borboleta tocou-me! Não me digam que isto é uma mensagem de deus e vou morrer. Ó que merda, era só o que me faltava. Só a mim é que acontecem estas porcarias. Depois apercebo-me que não deste por nada, não viste o que aconteceu, as tuas mãos firmes no volante, o teu olhar sempre tão sereno atento à estrada e às luzes. Lembro-me da piada da conversa do naúfrago com deus, ainda olho mais uma vez pela janela, talvez à espera de ver a borboleta a rodopiar, mas ela desapareceu, vejo apenas tráfico e cidade, pouso a mão no teu ombro, aquele espaço entre a clavícula e o pescoço, faço uma festa e peço-te para ires mais devagar, nunca se sabe o que pode acontecer.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES