– Ó senhor Barqueiro, deixe-me passar, tenho filhos pequeninos, não os posso sustentar...
– Passará, passará, mas algum deixará, se não for a mãe da frente é o filho lá de trás...
Lembram-se de andarmos todos a cantarolar isto? A infância era um lugar tão bonito. Hoje ficamos horrorizados com as letras que cantávamos alegremente e sem consciência nos recreios da nossa infância. Mãe desesperada, com filhos pequenos e sem sustento, implora a barqueiro mau como as cobras para passar o rio e o estapor responde que não há problema, há é um preço a pagar – a mãe ou um filho ficam para trás... Isto assim dito (cantado atenua um bocado o efeito) parece tenebroso, mas reparem bem. A canção ensina algo inestimável para a nossa, na altura, vida futura. Às vezes as coisas correm mal, muito mal, tudo tem um preço e há a forte probabilidade de se esbarrar com um anormal numa altura crucial da nossa vida – a passagem do rio. A questão é: o que fazer ao anormal? Na canção não havia solução. Mais. Alguém se lembra do início da cantilena?
Que linda falua, que lá vem lá vem, é uma falua, que vem de Belém...
Pois é. No início é sempre tudo maravilhoso. A falua é linda e vem na nossa direcção. Embora só a indicação da proveniência da falua fosse factor, por si só, de alerta máximo. Mas na altura não sabíamos os perigos que podiam vir de Belém. E cantámos, cantámos alegremente até colocarmos gravatas no pescoço e descobrirmos que a vida é uma grandessíssima falua com um animal lá dentro.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
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