O meu amigo. O meu amigo da esquadra e o que já aprendi com ele. Hoje lá estive outra vez, a mais antiga de Lisboa, informou-me ele enquanto passeava os olhos pelas paredes, os cartazes antigos, as fotografias, os espólios de décadas. É pequena e decrépita e situa-se na zona do centro da capital onde mais ouço falar de reabilitação, obras, futuro. Diz-me que não anda naquelas ruas, a profissão dele não é boa para passeios desse género. Eu conto-lhe dos prodígios que testemunhei nas últimas semanas, os restaurantes que inauguraram, os filmes ao ar livre no largo, a noite em que a velha guarda do cinema compareceu em peso, as obras na casa que estou a acompanhar, os petiscos tardios. E ele conta-me do cheiro. O homem que chegou à esquadra, na sala ao lado da nossa que vislumbro pela porta de tinta descascada entreaberta, o homem espancado, a escorrer sangue, o corpo saqueado. O homem da poça de sangue no chão, tal era a quantidade, tal a enormidade de tudo. E ele, tantos anos de serviço, tanta coisa já vista, tanta pancada de tudo, sentiu pela primeira vez o cheiro a sangue.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES