A noite de Verão era quente como recordo todas as noites da minha infância. A feira estava cheia de algodão doce cor-de-rosa, carrosséis e montanhas russas com gritos. A barraca do tiro ao alvo que tinha ursos de peluche como prémio. O comboio fantasma, as maças doces e as ciganas. E havia o gigante. Um cartaz pintado à mão anunciava-o como a grande estrela da noite. Havia filas e filas de pessoas para o ver, compro o bilhete, espero no meio da multidão. Finalmente entro na barraca de chão de terra batida nas minhas minúsculas sandálias de plástico. Está cheia, quente e mal iluminada, é preciso ser paciente. Um freak show não acontece todos os dias. Quando finalmente vejo o gigante, ele está sentado dentro de uma pequena casinha. Eu vejo um corpo descomunal, dez de mim, camisa branca, as mãos colossais cruzadas no colo e fico petrificado na desproporção daquele momento. As pessoas empurram-me, falam do gigante como se ele não ouvisse, metem a cabeça dentro da barraca para lhe ver a cara, apertam-lhe a mão, trinta e cinco centímetros de passoubem, e eu aterrorizado sem sair do mesmo sítio. E tenho tanta, tanta pena do gigante que me apetece chorar. Saio da feira com o coração anão. Nunca lhe vi a cara.
Setembro de 1989 - A queda do gigante
Rui Ochôa, Jornal Expresso, 3 de Outubro de 2009
Chamava-se Gabriel Mondlane, media 2,65 metros, pesava mais de 180 quilos, e era considerado o homem mais alto do mundo, fazendo parte do Livro de Recordes do Guinness. O gigante de Moçambique, como era conhecido, veio pela primeira vez a Portugal em 1969, causando grande alvoroço e curiosidade: em circos ou eventos privados, Gabriel era exibido pelo país como coisa rara e insólita, tendo viajado por todo o mundo. Regressou a Moçambique após a independência da antiga colónia. Por cá, as coisas não lhe correram de feição e rareavam os espectáculos. Casou-se e teve três filhos, vivendo do que lhe dava o restaurante que criara com o dinheiro (pouco) ganho com as exibições. Voltou uma segunda vez a Portugal, em 1979, mas o infortúnio perseguia-o: no Coliseu de Lisboa deu uma queda ao tentar subir as escadas, o que lhe provocou danos graves numa perna e a necessidade de um implante que foi fazer na África do Sul. Regressou pela última vez a Lisboa em Setembro de 1989, alvo da mesma curiosidade de sempre e vítima dos mesmos interesses que o faziam deslocar-se penosamente pelo mundo. Uma nova queda, em Janeiro de 1990, no quintal da sua casa em Mandlakazi, a sua terra natal, foi-lhe fatal: fez um grave traumatismo craniano, do qual não recuperou, e morreu no Hospital de Maputo com apenas 45 anos.
Fotografia retirada do Estado Sentido.
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