I.
Na rua escura e deserta, noite ainda cedo, sou abordado por quatro adolescentes tão imberbes como eu. A pretexto de um cigarro sou encurralado. No momento em que se aproximam deduzo o perigo, fazem perguntas agressivas, tentam baralhar-me, se tiver medo facilito-lhes a vida. Ofereço cigarros, respondo a tudo, dou-me ao luxo de acender um também e discretamente olhar para os dois que posicionaram-se nas minhas costas. Até faço perguntas. Quando o momento está tão tenso que não há mais nada a esperar do que o desfecho natural, perdido por cem, perdido por mil, atiro-me ao chefe, o que me parece o mais duro, o que decide. Atiro-lhe que o conheço, partilhamos a mesma escola, temos amigos em comum, frequentamos o mesmo campo de jogos. Olho de frente, sem hesitações, com o coração nas mãos, mas quem vê caras não vê corações e naquele momento tenho dois tipos de mãos nos bolsos a centímetros dos meus rins e de algo muito trágico. O chefe fica imóvel, faz contas à vida, diz que não me conhece, que estou a fazer confusão. Eu insisto, tenho a certeza que é ele. Nunca na minha vida o vi. Movimentos imperceptíveis dizem que está na altura de largarem-me. Desaparecem tão rápido como surgiram e eu fico sozinho na noite escura a pensar que se alguma coisa me há-de safar na vida é o raciocínio rápido. Pelo menos de levar uma facada.
II.
No restaurante de luxo com a cidade aos nossos pés, ouço-o enquanto levo o copo aos lábios para ganhar tempo. Está a conduzir a conversa, sabe bem onde quer chegar. Eu também sei qual é o desfecho mas acendo um cigarro, preciso de raciocinar. Faço perguntas, vou respondendo a algumas não dizendo nada. Quando estamos a atingir a velocidade cruzeiro, dá a entender que tenho de escolher um lado, que as minhas acções não passam despercebidas. É como se recuasse vinte anos e tivesse outra vez os dois tipos atrás de mim. Bebo vinho, sorrio, penso que em vez de uma pasta com livros escolares agora tenho bolsos cheios de lutas, assaltos no ringue. Penso que depois dos quatro rufias já tive armas apontadas à cabeça mas nunca tive tanto medo como na primeira vez. Penso que aprendi muito entretanto e, acima de tudo, que os ratos são iguais em todo o lado. Atiro-me a ele, digo-lhe nomes que sei que fazem efeito, dou a entender que o conheço muito melhor do que julga, que sei coisas que ele não sabe. Que passeio no mesmo campo de jogos. Substitui o sorriso na cara por umas rugas de expressão que não estavam no sítio antes. Bebe para ganhar tempo e acaba a recuar. Safo-me a um assalto com a mesma técnica recitada na rua duas décadas antes. Os cobardes são sempre iguais.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES