Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 2010

 

I.

Na rua escura e deserta, noite ainda cedo, sou abordado por quatro adolescentes tão imberbes como eu. A pretexto de um cigarro sou encurralado. No momento em que se aproximam deduzo o perigo, fazem perguntas agressivas, tentam baralhar-me, se tiver medo facilito-lhes a vida. Ofereço cigarros, respondo a tudo, dou-me ao luxo de acender um também e discretamente olhar para os dois que posicionaram-se nas minhas costas. Até faço perguntas. Quando o momento está tão tenso que não há mais nada a esperar do que o desfecho natural, perdido por cem, perdido por mil, atiro-me ao chefe, o que me parece o mais duro, o que decide. Atiro-lhe que o conheço, partilhamos a mesma escola, temos amigos em comum, frequentamos o mesmo campo de jogos. Olho de frente, sem hesitações, com o coração nas mãos, mas quem vê caras não vê corações e naquele momento tenho dois tipos de mãos nos bolsos a centímetros dos meus rins e de algo muito trágico. O chefe fica imóvel, faz contas à vida, diz que não me conhece, que estou a fazer confusão. Eu insisto, tenho a certeza que é ele. Nunca na minha vida o vi. Movimentos imperceptíveis dizem que está na altura de largarem-me. Desaparecem tão rápido como surgiram e eu fico sozinho na noite escura a pensar que se alguma coisa me há-de safar na vida é o raciocínio rápido. Pelo menos de levar uma facada.

 

II. 

No restaurante de luxo com a cidade aos nossos pés, ouço-o enquanto levo o copo aos lábios para ganhar tempo. Está a conduzir a conversa, sabe bem onde quer chegar. Eu também sei qual é o desfecho mas acendo um cigarro, preciso de raciocinar. Faço perguntas, vou respondendo a algumas não dizendo nada. Quando estamos a atingir a velocidade cruzeiro, dá a entender que tenho de escolher um lado, que as minhas acções não passam despercebidas. É como se recuasse vinte anos e tivesse outra vez os dois tipos atrás de mim. Bebo vinho, sorrio, penso que em vez de uma pasta com livros escolares agora tenho bolsos cheios de lutas, assaltos no ringue. Penso que depois dos quatro rufias já tive armas apontadas à cabeça mas nunca tive tanto medo como na primeira vez. Penso que aprendi muito entretanto e, acima de tudo, que os ratos são iguais em todo o lado. Atiro-me a ele, digo-lhe nomes que sei que fazem efeito, dou a entender que o conheço muito melhor do que julga, que sei coisas que ele não sabe. Que passeio no mesmo campo de jogos. Substitui o sorriso na cara por umas rugas de expressão que não estavam no sítio antes. Bebe para ganhar tempo e acaba a recuar. Safo-me a um assalto com a mesma técnica recitada na rua duas décadas antes. Os cobardes são sempre iguais.



publicado por afonso ferreira às 18:55 | link do post | comentar

5 comentários:
De afonso ferreira a 19 de Fevereiro de 2010 às 20:02
Não é preciso ser muito inteligente nem ter grande rapidez de raciocínio para lidar com cobardes, técnicas aprendidas em tenra idade no recreio costumam bastar.


De Sandra a 19 de Fevereiro de 2010 às 20:08
Talvez devesse ter passado mais tempo a interagir com os outros meninos no recreio...desde que cresci tenho vindo a aprender algumas (técnicas), mas não resultam da mesma maneira.

SB


De afonso ferreira a 19 de Fevereiro de 2010 às 20:11
É por essas e por outras que sempre defendi que andar à tareia no recreio é educativo. Aprende-se técnicas úteis para a vida adulta


De Sandra a 19 de Fevereiro de 2010 às 20:15
Não duvido. :)

SB


Comentar post

mais sobre mim
Dezembro 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

the end

Sleepless people

provérbio transmontano

cry me a river

Falta de rigor

obrigado

prémios literários

meia-noite

battle

status

Día domingo

imaginação

virtudes públicas, vícios...

fios

Estudos de um processo

arquivos

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

tags

a minha língua é a pátria portuguesa

cartas

casamento gay

coisas extraordinárias do gabinete

conversas de caserna

correspondência epistolar

corrupção

dias felizes

domingo

domingos

estudos

ghost writer

gira-discos

grandes crimes sem consequência

literatura

mercados

mundo virtual

outras cidades

paixonite

pequenas ficções sem consequência

perdido no arquivo

playlist

relvasgate

sonhos

suicídio público

taxistas

telenovela

um homem na megalópole

vendeta

viagens

todas as tags

links
subscrever feeds