I.
Divido o manuscrito em dois como quem corta um baralho de cartas. Ato cada parte a um dos pés com cordel grosso, verifico se está bem preso. Abro as válvulas do coração para o sangue estagnado na barragem correr livremente. Caminho pela marginal da vila paralela à ria. Espera-se a tempestade, os barcos e as gaivotas estão em terra, mas eu estou preparado. Passo pelo pontão solitário, os pescadores estão na casa das embarcações a jogar à sueca. Nem pestanejam à minha passagem, esta vila está habituada a coisas mais estranhas. Ouço falar da ilha abandonada a 4 km da costa mas aqui nunca é possível distinguir a verdade da ilusão.
II.
E porque estou eu aqui? A história começa há uns anos atrás quando o meu amigo chegou à vila numa noite de calor tórrido. Ao chegar à marginal viu um espectáculo insólito. A rivalidade entre os habitantes e os de uma vila vizinha tinha atingido o auge. Poderia ter sido o Romeu e Julieta mas como a vida real supera sempre a ficção, não havia amor, só ódio. Um dia a julieta da vila entrou no barco para atravessar a ria e o romeu de serviço atirou umas palavras despropositadas. A julieta não achou piada à falta de dotes falantes do romeu da vila rival. Chegando a terra tratou de tocar o sino a rebalde e convocar os capuleto em peso. Que não só partilharam da indignação como resolveram tirar o assunto a limpo com gasolina e fósforos. Quando o meu amigo chegou o que viu foi o pontão e a casa das embarcações a arder e a vila inteira satisfeita a ver. No dia seguinte o pacto de silêncio percorreu a vila e ele decidiu que era terra para ele.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES