Fui educado numa família onde a privacidade e o lar eram defendidos ferozmente. A casa era um espaço sagrado onde só entrava a família e os amigos mais chegados. As restantes pessoas eram recebidas no escritório. Durante muitos anos não tivemos campainha, ninguém aparecia na nossa casa sem avisar, portanto se tocasse era sinal de que não se devia atender. Uma vez, a propósito de uma mudança de morada, o novo telefone nunca foi requisitado. Foi uma coisa gravíssima para os adolescentes da casa, onde eu me incluía, porque aconteceu numa altura em que não havia telemóveis, os pagers funcionavam mal, e a nossa vida social ficou muito afectada por isso, ainda agora tenho traumas. Um dia um dos meus progenitores ouviu uma história (mito urbano é capaz de ser mais apropriado), alguém contou que quando numa casa quem tocava à campainha não era bem recebido gravava uma cruz na porta à laia de aviso aos futuros visitantes. Não esqueço o sorriso triunfante que trazia estampado no rosto quando entrou em casa e sem mais demoras gravou com uma faca da cozinha afiada uma cruz descomunal na porta de entrada. A cruz persistiu durante uns anos e eu nunca consegui confirmar a história nem vi na casa dos meus amigos alguma vez semelhante fenómeno. Aliás, muitos anos passados, a única vez que vi uma cruz foi na campainha de um amigo. Passado dias a casa foi assaltada. Fui eu que chamei a atenção para esse pormenor, sou um ás a ver cruzes nas portas dos outros, e ainda hoje ele está convencido de que o culpado foi o assaltante, que era a senha para identificar a casa. Depois de sair do ninho familiar nas várias casas onde vivi tentei contrariar a noção da privacidade apreendida. Mas ontem, depois de uma festa com dezenas de pessoas em casa na noite anterior, quando me tocaram à porta e vi uma família inteira que conheço mal (cão incluído) numa visita surpresa tive ganas de ir buscar uma navalha e gravar uma cruz de alto a baixo na porta. Quem saí aos seus não degenera.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES