Segunda-feira, 8 de Março de 2010

 

Fui educado numa família onde a privacidade e o lar eram defendidos ferozmente. A casa era um espaço sagrado onde só entrava a família e os amigos mais chegados. As restantes pessoas eram recebidas no escritório. Durante muitos anos não tivemos campainha, ninguém aparecia na nossa casa sem avisar, portanto se tocasse era sinal de que não se devia atender. Uma vez, a propósito de uma mudança de morada, o novo telefone nunca foi requisitado. Foi uma coisa gravíssima para os adolescentes da casa, onde eu me incluía, porque aconteceu numa altura em que não havia telemóveis, os pagers funcionavam mal, e a nossa vida social ficou muito afectada por isso, ainda agora tenho traumas. Um dia um dos meus progenitores ouviu uma história (mito urbano é capaz de ser mais apropriado), alguém contou que quando numa casa quem tocava à campainha não era bem recebido gravava uma cruz na porta à laia de aviso aos futuros visitantes. Não esqueço o sorriso triunfante que trazia estampado no rosto quando entrou em casa e sem mais demoras gravou com uma faca da cozinha afiada uma cruz descomunal na porta de entrada. A cruz persistiu durante uns anos e eu nunca consegui confirmar a história nem vi na casa dos meus amigos alguma vez semelhante fenómeno. Aliás, muitos anos passados, a única vez que vi uma cruz foi na campainha de um amigo. Passado dias a casa foi assaltada. Fui eu que chamei a atenção para esse pormenor, sou um ás a ver cruzes nas portas dos outros, e ainda hoje ele está convencido de que o culpado foi o assaltante, que era a senha para identificar a casa. Depois de sair do ninho familiar nas várias casas onde vivi tentei contrariar a noção da privacidade apreendida. Mas ontem, depois de uma festa com dezenas de pessoas em casa na noite anterior, quando me tocaram à porta e vi uma família inteira que conheço mal (cão incluído) numa visita surpresa tive ganas de ir buscar uma navalha e gravar uma cruz de alto a baixo na porta. Quem saí aos seus não degenera.



publicado por afonso ferreira às 17:56 | link do post | comentar

mais sobre mim
Dezembro 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

the end

Sleepless people

provérbio transmontano

cry me a river

Falta de rigor

obrigado

prémios literários

meia-noite

battle

status

Día domingo

imaginação

virtudes públicas, vícios...

fios

Estudos de um processo

arquivos

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

tags

a minha língua é a pátria portuguesa

cartas

casamento gay

coisas extraordinárias do gabinete

conversas de caserna

correspondência epistolar

corrupção

dias felizes

domingo

domingos

estudos

ghost writer

gira-discos

grandes crimes sem consequência

literatura

mercados

mundo virtual

outras cidades

paixonite

pequenas ficções sem consequência

perdido no arquivo

playlist

relvasgate

sonhos

suicídio público

taxistas

telenovela

um homem na megalópole

vendeta

viagens

todas as tags

links
subscrever feeds