A mão estende-me a chave do quarto pela janela do carro sem dizer uma palavra. Vejo a figura desaparecer no átrio do hotel na explosão das luzes amarelas. Continuo a bebericar o champanhe. Rodo a chave entre os dedos. Sinto a placa de metal recortada. Quarto 702. Dou uma passa e fecho por instantes os olhos. Esvazio o copo, atiro com a beata pela janela, abro a porta. Não digo nada e já não quero saber da cara do motorista. No passeio componho o casaco e passo a mão pela cabeça. Estou novamente em mim. Alguém dizia que há mais distância entre nós e nós próprios do que entre nós e os outros. Neste momento essa distância esbate-se, eu e eu estamos lado a lado, finalmente, como dois cães de fila atentos. Subo a escadaria e entro no hotel ao mesmo tempo que uma mulher bela. Não consigo desviar o olhar. A mulher continua imperturbável, sou invisível, não existo. Em fracções de segundos percebo que não tem uma ponta de altivez no olhar, antes uma calma desconcertante, embora o rosto não seja bondoso. Uma estátua de mármore humano. Por isso também não deste mundo, do céu e da terra. Procuro o elevador, ouço os meus passos no chão, olho rapidamente para a recepção mas sou invisível, não existo, os empregados estão a atender outros clientes. Ouço jazz, provavelmente executado por uma banda num bar que não chego a ver. No elevador, desejo que no quarto estivesse à minha espera a prostituta de luxo. Mas, em vez da estátua, tenho um corpo. Penso no corpo e o desejo aparece em ondas. Sinto-o no estômago. O desejo invisível.
(cont.)
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES