Quarta-feira, 17 de Março de 2010

W. Robert Moore

 

I.

São poucas ruas, deve ser das freguesias mais pequenas de Lisboa, mas cabe o mundo inteiro no meu bairro. Temos o castelo, palacetes, igrejas, quartéis, prisões, xafaricas, miséria e uma vista incrível para o rio e o mundo. O meu bairro é como os balcãs, têm mais história do que aquela que consegue digerir. Acordo todos os dias a passos onde o meu pai morou muitos anos antes de eu ser gente. Um dia mostrou-me a janela do seu quarto quando era estudante. Não é uma janela qualquer, fica situada numa torre com ameias do quartel que foi desactivado recentemente. Por baixo da janela havia soldados armados e uma guerra amarga a decorrer ao longe enquanto ele destruía lentamente os olhos a estudar direito e a salvar a vida. No mesmo sítio ficaram alojados os pais e os avós de um amigo quando regressaram à metrópole depois do 25 de Abril. Neste quartel ficaram muitas famílias a viver durante anos a aguardar que a vida prosseguisse. Umas ruas abaixo, na prisão do Limoeiro, esteve o avó de outro amigo. Por razões políticas esteve nos calabouços mais tempo do que com a família. Hoje uma das netas é deputada. Durmo por cima de um teatro romano que ainda vai esperar muito tempo até ver a luz do dia. Passeio todos os dias pela história apagada, pelas ruas da antiga judiaria que viu massacres sem fim e a destruição de todas as suas sinagogas até não restar nenhuma. 

 

II. 

No meu bairro não existem edifícios novos, os mais recentes datam dos anos 40. O edificado oscila entre o preservado e a ruir, não há meio termo. Todos os edifícios, todas as ruas, todas as pedras têm uma patine única. Há segredos escondidos em todo o lado. Atrás de fachadas sem interesse, que mais muros parecem sem janelas para a rua, escondem-se pátios e escadarias ornamentados com flores. No armário das especiarias do restaurante onde vou todos os dias esconde-se a porta por onde o Marquês de Pombal emergia dos túneis subterrâneos para passar as noites com a amante no convento. A minha rua é a representação perfeita que persiste da sociedade portuguesa. Começa no castelo, morada de reis, continua com os palacetes com piscina e jardim, prolonga-se nas casas com preço proibitivo da classe média-alta com vista desafogada para o rio e cozinhas design, desliza pelas casas com história morada de escritores e artistas com direito a placa comemorativa e finaliza na fiada de prédios de origem humilde. Como num filme antigo do Vasco Santana houve quem ensinasse ao cão dos prédios humildes a ir sozinho à rua. Abrem a porta do prédio e lá vai ele, todo contente e bem ensinado, rua acima defecar à zona dos ricos.

 

III.

O bairro é uma aldeia cheia de gente. Os palhaços malabaristas da escola circense, os estudantes de arquitectura, as filmagens, os artistas de rua, os soldados. Os futuros juízes a carregar as malas prenhas de livros, os namorados no banco do largo. Os turistas de todos os cantos do mundo a desfilar diferenças anatómicas, a soletrar o nome das ruas, a tentarem coincidir os nomes com os mapas, os turistas perdidos que encaminho todos os dias. A maior bebedeira que apanhei no bairro foi a beber gins com a minha vizinha de 70 anos. A minha vizinha que agora precisa de ajuda para poder sair. E como a vida é feita de ciclos preciosos, um dia destes em vez da ambulância à porta deparei-me com uma bola perfeita ligeiramente empinada em direcção ao céu. Vai nascer um bebé no meu prédio. Será a quinta criança a viver aqui e a contrariar a grande fuga para a periferia que esvazia a cidade de vida. 



publicado por afonso ferreira às 12:43 | link do post | comentar

13 comentários:
De Andorinha a 17 de Março de 2010 às 14:29
Esse também já foi o meu Bairro. Espero que volte a ser em breve, quem sabe, nos próximos anos. Sou uma nortenha vendida e com muito gosto. Amo Lisboa, tenho imensas saudades. Principalmente do nosso Bairro.


De afonso ferreira a 20 de Março de 2010 às 22:08
Volte rapidamente, fazem-nos sempre falta andorinhas


De o amigo conservador a 17 de Março de 2010 às 15:10
é lindo sim!
...freguesia de Santiago, e quando perguntei à senhora da loja que vende os 28 em miniatura a preços especiais para moradores onde terminava fisicamente a freguesia, ela respondeu com sabedoria, para lá da porta é Castelo...
um abraço amigo


De afonso ferreira a 20 de Março de 2010 às 22:10
Caro amigo,
"28 em miniatura a preços especiais para moradores"?
É por estas e outras coisas que eu adoro a nossa zona.
Abraço


De ISABEL G a 17 de Março de 2010 às 16:29
Gostei imenso, Afonso.


De afonso ferreira a 20 de Março de 2010 às 22:10
Obrigado Isabel :)


De Paz a 17 de Março de 2010 às 20:10
Que bom ter um bairro, e ainda mais um bairro assim!... Tão cheio, tão rico!


De Margarida a 17 de Março de 2010 às 20:30
O Homem na Cidade dever ser feliz por viver num bairro assim. É um privilégio !!


De senhor tocas a 20 de Março de 2010 às 11:55
rua da saudade?


De afonso ferreira a 20 de Março de 2010 às 22:10
exacto


De Emprestimo a 17 de Janeiro de 2011 às 17:41
Adorei o blog, conteúdo muito bem escrito, layout bacana com cores amigáveis. Vou aproveitar e adicionar o blog nos meu favoritos. bjs! Maria Cecilia


De NET Goiania a 21 de Março de 2011 às 15:09

Nossa, que massa esse blog! vou acompanhar seus textos, bjao!
Ana Lúcia


De António Amado a 2 de Abril de 2012 às 23:42
Não nasci na Rua da Saudade, mas quase. Fui para lá com 4 anos de idade. Antes vivera na Rua do Barão e depois na Rua Augusto Rosa, num recanto quase em frente à prisão política do Aljube. Portanto sempre na mesma área.
Na Rua da Saudade vivi toda a minha infância e juventude e embora tenha de lá saído em 1962, aos 25 anos, minha mãe por lá permaneceu até finais dos anos 90.
A casa onde vivi é a última da rua e ali desfrutava de uma paisagem deslumbrante: da varanda das traseiras tinha a meus pés toda a baixa pombalina, Monsanto, Estrela com sua linda basílica, o Tejo até para lá do Bugio e toda a outra banda até ao Barreiro.
Era uma rua com pessoas muito típicas que todos os dias se juntavam na tasca do ti-Marcelino cavaqueando com um copo de 2 na mão: o Manuel sapateiro, o presidente da Junta de Freguesia, o sr . Carcavelos que segundo constava era brasonado.
Por volta de 1947 desabou para a Rua de São Mamede o muro que sustinha a propriedade que ligava as duas ruas deixando a descoberto as ruínas romanas de cuja existência há muito se sabia mas que ninguém tinha tido a iniciativa de as submeterem às visitas públicas.
Desde então a Rua da Saudade ficou completamente descaracterizada, deitaram-se prédios abaixo, colocaram-se tapumes de madeira só recentemente transformados em muros de tijolo e cimento, colocaram-se passadiços para peões e cortou-se a rua ao trânsito.
É com grande nostalgia desses tempos que recordo com imensa saudade essas pessoas com quem ali convivi e os amigos em cuja companhia nos fizemos homens.


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