W. Robert Moore
I.
São poucas ruas, deve ser das freguesias mais pequenas de Lisboa, mas cabe o mundo inteiro no meu bairro. Temos o castelo, palacetes, igrejas, quartéis, prisões, xafaricas, miséria e uma vista incrível para o rio e o mundo. O meu bairro é como os balcãs, têm mais história do que aquela que consegue digerir. Acordo todos os dias a passos onde o meu pai morou muitos anos antes de eu ser gente. Um dia mostrou-me a janela do seu quarto quando era estudante. Não é uma janela qualquer, fica situada numa torre com ameias do quartel que foi desactivado recentemente. Por baixo da janela havia soldados armados e uma guerra amarga a decorrer ao longe enquanto ele destruía lentamente os olhos a estudar direito e a salvar a vida. No mesmo sítio ficaram alojados os pais e os avós de um amigo quando regressaram à metrópole depois do 25 de Abril. Neste quartel ficaram muitas famílias a viver durante anos a aguardar que a vida prosseguisse. Umas ruas abaixo, na prisão do Limoeiro, esteve o avó de outro amigo. Por razões políticas esteve nos calabouços mais tempo do que com a família. Hoje uma das netas é deputada. Durmo por cima de um teatro romano que ainda vai esperar muito tempo até ver a luz do dia. Passeio todos os dias pela história apagada, pelas ruas da antiga judiaria que viu massacres sem fim e a destruição de todas as suas sinagogas até não restar nenhuma.
II.
No meu bairro não existem edifícios novos, os mais recentes datam dos anos 40. O edificado oscila entre o preservado e a ruir, não há meio termo. Todos os edifícios, todas as ruas, todas as pedras têm uma patine única. Há segredos escondidos em todo o lado. Atrás de fachadas sem interesse, que mais muros parecem sem janelas para a rua, escondem-se pátios e escadarias ornamentados com flores. No armário das especiarias do restaurante onde vou todos os dias esconde-se a porta por onde o Marquês de Pombal emergia dos túneis subterrâneos para passar as noites com a amante no convento. A minha rua é a representação perfeita que persiste da sociedade portuguesa. Começa no castelo, morada de reis, continua com os palacetes com piscina e jardim, prolonga-se nas casas com preço proibitivo da classe média-alta com vista desafogada para o rio e cozinhas design, desliza pelas casas com história morada de escritores e artistas com direito a placa comemorativa e finaliza na fiada de prédios de origem humilde. Como num filme antigo do Vasco Santana houve quem ensinasse ao cão dos prédios humildes a ir sozinho à rua. Abrem a porta do prédio e lá vai ele, todo contente e bem ensinado, rua acima defecar à zona dos ricos.
III.
O bairro é uma aldeia cheia de gente. Os palhaços malabaristas da escola circense, os estudantes de arquitectura, as filmagens, os artistas de rua, os soldados. Os futuros juízes a carregar as malas prenhas de livros, os namorados no banco do largo. Os turistas de todos os cantos do mundo a desfilar diferenças anatómicas, a soletrar o nome das ruas, a tentarem coincidir os nomes com os mapas, os turistas perdidos que encaminho todos os dias. A maior bebedeira que apanhei no bairro foi a beber gins com a minha vizinha de 70 anos. A minha vizinha que agora precisa de ajuda para poder sair. E como a vida é feita de ciclos preciosos, um dia destes em vez da ambulância à porta deparei-me com uma bola perfeita ligeiramente empinada em direcção ao céu. Vai nascer um bebé no meu prédio. Será a quinta criança a viver aqui e a contrariar a grande fuga para a periferia que esvazia a cidade de vida.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES