Podia ter escolhido a cadeira virada para a janela, os eléctricos e o rio, mas optei por almoçar com vista para eles. Ambos na casa dos 70, ele completamente calvo, a cabeça a reluzir, ela de cabelo curto grisalho. Almoçam serenamente, ele um peixe, ela algo que não decifro. Espreito por cima do jornal, não dão por mim. Sempre gostei de velhotes, quando era miúdo preferia ficar a ouvi-los do que a jogar à bola. Conversam casualmente, do tempo, do compromisso que têm a seguir, de um amigo em comum em que divergem na opinião formada. Têm bom gosto, reparo nos óculos de metal dele, nos brincos de pérola e nas unhas pintadas dela. Apetece-me meter conversa mas acabo por remeter-me ao silêncio. Tento perceber se são um casal, se familiares, talvez irmão e irmã, talvez apenas amigos. Divirto-me secretamente a imaginar que foram amantes quando eram novos. Uma relação clandestina nunca assumida e que agora, no fim da vida, reencontraram-se. Gosto da forma como ele pede um pudim flan ao empregado, aprecio a forma elegante de ela mexer o açúcar no café. Quando os dois decidem palitar os dentes em simultâneo não me restam dúvidas. São um casal.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES