Segunda-feira, 22 de Março de 2010

"(...) Eva convenceu-se que sim, fomos felizes nos primeiros tempos, afirma, e é só nisso que quer acreditar, às vezes desculpa-se, a felicidade nunca é o que se imagina, fomos felizes só que a felicidade não se descreve, não se toca, não se vê, claro que se esquece dos pequenos gestos em que a felicidade tem por hábito denunciar-se, flores compradas num sábado de manhã, uma caixa de bolos presa por um cordel no domingo à tarde, nunca fizeram isso, não foram felizes nem na pequena medida com que a felicidade contenta os que dela precisam, apesar de Eva dizer que sim, se calhar por se ter esforçado muito. Eva esforçou-se muito em tudo, trabalhava de noite e dia, ele andou por muitos empregos mas a maior parte do tempo estava em casa, fechava as janelas e deixava-se ficar protegido dos outros, por ingenuidade pensava que os podia enganar desta maneira, ainda era um aprendiz da arte que veio a ter, ter outras vidas é um trabalho que exige experiência, quando saía à rua as vizinhas cochichavam, não faz nada, nunca vi tanta preguiça, a coitadinha merecia bem melhor mas quem corre por gosto não cansa, o dono do café olhava-o enojado, um homem não se deixa sustentar pela mulher, foi o agouro dos olhos da mãe que os perdeu, no tempo que passava em casa podia ter feito o jantar, ter escrito amo-te no armário da casa de banho, ter comprado um ramo de flores, podia ter feito tantas coisas que aliviassem o cansaço, que a compensassem da má escolha, mas deixava-se sempre ficar a ver televisão , deitava-se no sofá e lia revistas aos quadradinhos, comia bolachas de água e sal, Eva apesar de tudo enternecia-se, pareces um miúdo, nunca soube que demorava-se a tomar banho, a barbear-se, detinha-se em qualquer coisa, conhecia perfeitamente os passos dos vizinhos de cima, sabia a quem correspondiam, à mãe, ao pai, a cada um dos filhos, é difícil reconhecer os passos de cinco pessoas, são precisos muitos dias atentos, e depois havia outras coisas, por exemplo, as nódoas na alcatifa, ordenava-as por tamanhos, antiguidade e origem, também sabia as horas a que o sol batia na jarra de vidro martelado, dias inteiros fechado à espera que Eva voltasse"

 

Campo de Sangue, Dulce Maria Cardoso



publicado por afonso ferreira às 00:35 | link do post | comentar

3 comentários:
De Sandra a 23 de Março de 2010 às 00:47
Este rapaz deve ser peixes. :)

SB


De Sandra a 23 de Março de 2010 às 00:53
Eles tendem a perder-se nestes pequenos pormenores que passam despercebidos ao comum dos mortais...

SB


De afonso ferreira a 23 de Março de 2010 às 01:16
É verdade, comprovo isso todos os dias :)


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