Era uma noite, demasiado quente para o mês de Março. Caminho pela rua à procura da morada. Numa entrada de um prédio vejo um bando de gatos a comer e por segundos imaginei quem seria que os alimentava. Das tigelas subia um vapor de solidão mas podia estar enganado. De súbito, vejo, deitado num degrau, um gato com o corpo num ângulo estranho. Pensei se não estaria morto. Tento chamar a atenção do bicho com pequenos assobios. Em vão. Ao lado do gato morto estava outro de pêlo preto que dá com a pata no cadáver. Pancadinhas suaves. Isto deixa-me alerta. Como se tivesse visto um bando de pássaros silenciar-se, prenúncio de tragédia. Pássaros em terra, tempestade no mar. Ouço passos na rua, duas sombras em movimento, e decido continuar caminho. Só uns metros à frente percebo que o prédio que procuro é o do gato morto. Volto atrás. Acendo um cigarro e olho novamente para o animal. O gato preto continua a dar pancadinhas. Não arreda pé. Inspiro calmamente no silêncio da noite quente. Apago o cigarro e toco à campainha. Subo no elevador do prédio antiquado. Na sala está o velho encenador de cabelos brancos e três elementos da companhia. Fico numa posição desconfortável, o encenador insiste que fique sentada ao pé dele mas isso obriga-me a que nunca veja todos os rostos de uma só vez. Gosto daqueles rostos. De alguma forma apaziguam-me. O velho encenador fala com voz de profundeza escorreita. Ouço a sua respiração de canário, o esforço de quase não vida, aquele silvo no meio das frases. Despeço-me como se fosse a última vez. Saio para a noite a escaldar e os dois gatos estão sós com as tigelas vazias. Um morto, o outro a dar pancadinhas no cadáver.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES