Quinta-feira, 17 de Dezembro de 2009

 

Passava pouco das cinco, a hora do ajuste de contas do dia. As pequenas notícias quotidianas, os amores e ódios, as patetices. Da cozinha vinha o cheiro de comida, na sala, à volta da pequena mesa de café, as mulheres da minha vida.

 

O dia vence-me. Apago as luzes. Deslizo para a cama sem fazer barulho. Na quietude da casa, a cama a abanar, eu a procurar o corpo debaixo dos lençóis, a acalmar o pesadelo, a sossegar como fazem as mulheres. Também eu afago e afasto as coisas terríveis.

 

O bibe encardido, os joelhos esfolados, a minha pasta vermelha com os livros e as pautas do piano a passearem na lentidão do meu corpo a crescer. Na sala, a planta que todos juravam que tinha um comportamento suspeito. Movimentos súbitos, parecia que ouvia as conversas. No sofá observávamos a planta demoradamente. Parecia inofensiva, tinha uma flor cor-de-rosa.

 

O corpo sossega, o pesadelo diluí, mas o espelho encostado à parede continua em agonia.

 

As mulheres estão bem-dispostas, demoram-se na conversa. Os olhos verdes queixam-se. Ou o tecto é muito baixo ou o candeeiro com pingentes é muito grande. Incontáveis as cabeçadas de todos. Cada acidente, uma chuva de sons de cristal, uma testa esfolada. Que isto era bom era para prever terramotos, afiançam os olhos verdes. E os pingentes a abanar.

 

O espelho pára e eu caminho para o sonho.

 

Mais um movimento suspeito. Os olhos castanhos garantem que a planta estava virada para a direita e agora está no sentido contrário. Olhamos demoradamente a planta, em silêncio. Suspeita, suspeita. Sacana da planta, estamos nós a ficar doidos varridos?

 

Deslizo por entre os lençóis, encosto-me ao corpo tépido.

 

Olhos castanhos surgem triunfantes com uma enciclopédia de plantas, percorremos os nomes em latim. Percorremos as fotografias à procura de uma flor cor-de-rosa.

 

Acordo de madrugada e vejo a mensagem. Houve um tremor de terra, respondo que não senti nada, mas depois recordo o pesadelo, a cama a estremecer, o espelho com vida própria.

 

E os pingentes a abanar e nenhuma cabeçada. A planta, a sacana da planta.

 

Ligo às mulheres da minha vida. Ninguém atende, nem uma vez nem duas vezes. Sinto os pingentes em mim. Os lençóis são camisas de força. Finalmente a voz do outro lado. Que sim, que os estendais abanaram todos, silvos na noite, pareciam comboios a chegar à estação, mas os candeeiros estavam quietos, ela bem olhou para eles. E, se os candeeiros não mugem nem tugem, não há-de ser nada. Pior são os que têm vida.

 

E os pingentes a abanarem. A sacana era uma planta carnívora, uma cobra vegetal. Enganou-nos bem.

 

Sossego e vou ver as notícias, os amigos, as pequenas histórias. Tudo a olhar para os candeeiros mas os candeeiros não abanam. 

 

Isto era bom era para prever terramotos, diziam os olhos verdes, e o terramoto a acontecer às cinco da tarde.



publicado por afonso ferreira às 15:20 | link do post | comentar

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