Todos os dias passei pela basílica e todos os dias pensei em entrar. Todos os dias e todas as noites não dei descanso à vontade. Hoje a ironia trocou as voltas ao desejo e convidou-me. Subi a escadaria e apaguei o cigarro, entrei na porta lateral e senti o ar fresco a rodear-me, a primavera lá fora, percorri o corredor estreito e vi pessoas e pessoas até chegar a ti. Abracei fatos de fazenda escura, senti o cheiro das flores das coroas funerárias, a matiz da luz das velas, os olhos embaciados. A sala com o corpo ao centro, sofás pousados com tristezas empoleiradas. Tanto desejei que entrei, a basílica a envolver-me, este corredor, este lusco-fusco, este útero. Saí quando a música começou, voltei a abraçar os fatos húmidos de lágrimas, os olhos raiados, lá fora senti o coração em chumbo, a morte a fazer do nada coisa alguma. Resta-me desejar paz.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES