O taxista não acaba a frase, tira o cinto de segurança, abre a porta e sai. Passadas largas por entre o trânsito infernal, é novo e usa óculos e desaparece. Sem explicação. A porta do condutor fica aberta, a chave na ignição. E eu espero uns segundos. Longos. E tenho o pressentimento, o terrível pressentimento de que tenho de voltar.
Rápido. Sai do táxi, já. Agora. Volta ao sítio onde a deixaste.
As buzinas aumentam, já há um carro a ultrapassar o táxi, a amolgar a jante no passeio. Dois. Três. Agora, pego no telemóvel e ligo, ligo, e ligo mais uma vez. E na frustração crescente (será medo?) penso em galgar o banco da frente e pôr a primeira. Talvez até fechar a porta. Buzinas, buzinas e nada. O carro parado na Praça do Camões, eu sem me mexer e o travão de mão não sabemos se está posto. Segundos, minutos e mais um tempo. E eu desisto. Não me mexo, não quero saber. Amolguem as jantes, berrem, já não posso ver nem bêbados nem taxistas à frente. Respiro fundo, tão fundo, e mesmo assim o ar não chega. Nunca chegará nesta latrina de cidade. Respiro tão fundo que sinto vontade de acender um cigarro. E por pouco não o faço. O caixa de óculos volta intacto e por isso percebemos que o adversário vai estar a papas amanhã. Pode ser que tenha merecido. Ou não. Não diz nada e o carro desliza pela praça. As buzinas cessam. Eu não voltei atrás. Nunca volto e tenho medo. Um medo nos ossos. Eu não sei escrever sobre isto porque há histórias que não se contam. Mas o que nos compele a mencionar pequenas palavras, tão pequeninas, presas por fios finíssimos de baba, pontes entre a realidade e o nosso medo profundo, a quem bate o cotovelo com o nosso e outras coisas para além de bater o cotovelo com o nosso. Eu não posso contar, mas digo-te esta pequena palavra quase inaudível para ter o conforto de ter comungado esta história. Mesmo que não saibas e não a ouças. Há dias procurei, procurei e procurei em vão, um texto que escrevi. A missiva seguiu em tempos para uma pessoa em França que apanhou uns quantos aviões na esperança de um futuro radioso comigo. O futuro nunca aconteceu e o texto chegou ao destinatário e não voltou com certeza, aqui não o encontro. Já abri os armários, espreitei debaixo da cama e na gaveta dos talheres e não descubro a porcaria das palavras. E tenho a certeza que esse texto foi o melhor que escrevi em toda a minha vida. Tenho a certeza porque não o encontro. E não me lembro do que escrevi. E, por não o encontrar e não me lembrar, tenho a certeza, mas mesmo a certeza, de que estava tudo escrito. Tudo o que me faz medo, sem hesitações, nem virgulas a mais e, acima de tudo, porque sabia que não era o meu futuro. E agora, vou ter de escrever outro texto e já não sei se consigo. Há dias em que penso uma coisa e no dia seguinte defendo o contrário e neste entretanto de vida teria de refazer e desfazer o mesmo texto tantas e tantas vezes quantas o vento soprasse. Hoje recebi uma mensagem no telemóvel
"Já regressei (hoje) a Lisboa"
de uma pessoa que já não faz parte do meu quotidiano. E da qual não espero nada, muito menos se chega (hoje) ou não à cidade. Não respondi, tenho a secreta esperança de que seja engano, principalmente a palavra hoje. Mas hoje obriga-me a pensar no meu amanhã. O que não quer necessariamente significar futuro, isso é muito mais tarde (isso é passado). E a pensar que as pessoas da minha vida andam a apanhar muitos aviões. E que eu escrevo cada vez menos cartas. E que gostava de falar de ti no meu amanhã. Mesmo que não diga nada. Faz boa viagem.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES