Quando o inverno corrompia os ossos e chegava a casa e na aparelhagem tocava o So What a ronronar pelas paredes e nos vidros embaciados pela água a escaldar. A banheira cheia, mergulhava o corpo até à combustão, até o sangue correr na casa-risco-ao-meio gelada, o corredor sem fim à vista, portas à esquerda e à direita. Os quartos com portas interiores e eu a perder-me na casa e em mim próprio todos os dias. O quarto fechado que tinha um balcão de bar dos anos 50 e eu a pensar no que ia fazer à vida com uma bebida a queimar-me as entranhas. À noite sentava-me à mesa e traçava mapas e objectivos. Era a casa a tomar conta de mim, a desfilar memórias, os sobreviventes do horror, as plaquinhas em hebraico presas na diogonal nas ombreiras, as fotografias baças. Um dia nevou, flocos de neve que se transformavam em água ao bater no solo. Eu na varanda a olhar para o céu e a pensar que nunca tinha nevado na cidade, que a minha desorientação tinha contaminado o tempo, uma epidemia de gelo. A música todas as noites, enquanto mergulhava na banheira e contava os minutos sem respirar, enquanto a casa ficava nas minhas memórias e o Coltrane gravado eternamente na minha banda sonora.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES