Esta chuva que não pára, esta lama nas ruas, esta humidade pegajosa no ar. Atravesso a cidade à hora combinada e estaciono em segunda fila à tua espera. No rádio, a descrição das filas selvagens nos acessos aos subúrbios desesperados. Imagino as filhas-da-putice das ultrapassagens, as rodas a chiarem. Espero os dez minutos da praxe, enquanto desligas o computador, enquanto desejas boas festas a todos, enquanto dizes uma ou outra frase feita em direcção ao elevador. Talvez desças com algum colega e falem de qualquer coisa, tu sempre a sorrir. Lá estás tu à porta do edifício a falar. Lá estás tu, vestida de vermelho a sorrir, com a camisola que nunca gostei, com o trejeito que odeio, a cabeça de lado, os cabelos a tremer. Não ouço, mas sei o que dizes na tua indiferença pelos problemas dos outros bem disfarçada com a voz grave que colocas quando dizes – Isso não há-de ser nada. Vejo-te a caminhar em direcção ao carro por entre o trânsito, o passo confiante. Vejo-te a fechar o guarda-chuva com as unhas de plástico que sempre abominei. Abres a porta e decido que logo à noite vou sair para comprar tabaco e não vou voltar.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES