I
A tropeçar pela calçada no conflito esquizofrénico habitual das manhãs os meus passos levam-me até ao largo. Imponente, entalado entre duas ruas íngremes em direcção ao céu, o chafariz ao centro, a inscrição no mármore, os jacarandás a dar sombra aos bancos. Eu não sei se foi de propósito mas floriram todos e o largo está tingido de cor, as folhas desmaiaram na calçada e nos carros. É belo e os meus passos estagnam vencidos pelo assombro. Num estranho casamento, raro de assistir, estão dezenas de pessoas debaixo dos jacarandás como se fossem um corpo uno. São muitos e cantam. Um olhar mais atento revela que são só homens e carregam cartazes e faixas, e o que parecia uma cantiga afinal são palavras de ordem ásperas. O que dá o tom de cantilena ao discurso inflamado são as garrafas de álcool que muitos carregam. Estão bêbados e são muitos e é muito cedo. Estão eles a vacilar agarrados aos cartazes debaixo dos jacarandás e uma brisa húmida agarra-se ao largo, aos polícias e aos meus passos. A assistir à estranha ópera está o edificio que alberga os destinos da economia. Os polícias atrás do portão, já lá estão também manifestantes. O ministério sereno, já viu muita coisa na vida, não hão-de ser uns jacaradás a florir nem uns desesperados com os copos a quebrar a sua vontade, isto há-de ruir até ao último tostão.
II
Devia com certeza fazer barulho, os relinches metálicos habituais, mas agora o que recordo é o carro a deslizar silencioso pela avenida, o rio ao fundo, azul-petróleo, o dia a morrer devagarinho. O cansaço a desprender do corpo e ela, alemã, dizem os documentos, a olhar para os jacarandás. A abrir a janela e com a cabeça pendente a tentar perceber o seu aroma. A dizer que nunca tinha visto, em Berlim não existem árvores coloridas que tingem as cidades de espanto. A contar da filha Lila que significa este lilás que entra no corpo adentro. Seguimos pela avenida a fiar histórias até chegar ao rio. Do dinheiro que é necessário para continuar a erguer obra(s), dos projectos que são necessários para a vida fazer sentido, do amor e da sexualidade, quando o cansaço instala-se e modifica as perspectivas do futuro e dos afectos. Há noites que convidam a relembrar o significado de respirar.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES