Eu esqueci-me disto. Dos fins de dia a passear o cesto. Era tão fácil falar agora das prateleiras de lacticínios e detergentes no supermercado atulhado de solteiros, gravatas e stilettos. Era óbvio falar do pescoço que esticou quando tirei a senha nos enchidos. Era natural afirmar que também olhei demonstrando conhecimento das regras estabelecidas e boa convivência no flirt. A secção da fruta cheia de homens de fato a apalpar maças e melões. Elas de olhos pintados a comprar iogurtes. Os olhares. Parece uma sala de bingo. Uma geração à espera de fazer linha. Enquanto aqui estou é raro não imaginar que poderíamos trocar os olhares por cartões e saltar etapas. Profissionalmente sou obrigado a isso todos os dias, o que deriva numa colecção considerável. Pelo tipo de letra, as cores escolhidas, a informação contida e a gramagem do papel adivinha-se muito do dono. Recentemente recebi o cartão. Papel branco sujo sem brilho, o nome centrado ao meio, tipografia elegante. Ao virar o cartão à espera de encontrar os contactos deparo-me com o verso limpo. Hoje, a passear com o chiado das rodinhas do carro como banda sonora, relembro o tipo de letra, a cor, os dois nomes gravados e penso estar apto a dizer sem ausência de dúvida: ele é perfeito.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES