Study of an Old Man in Profile, c. 1630, Rembrandt
Desta vez não estava muito bem. Mais calado do que é o seu costume, um olhar desconfiado, a tradução física da confusão que sente. No restaurante pediu ananás como prato principal deixando o empregado pouco à vontade. Uma piscadela de olho discreta e a reformulação do pedido com a voz mais calma que consegui atenuou a tensão. Olhei pela janela para ganhar tempo e apaziguar o meu receio mas não vi o trânsito nem o vapor a sair do alcatrão, não vi o sol nem a cor dos azulejos verde-água do prédio em frente. Vi o teu reflexo, o teu corpo antes tão forte agora desmaiado, o ombro esquerdo caído, a mão morta, os teus cabelos tão ralos. Tenho o curioso pensamento de não recordar o teu rosto com barba, nem quando estavas no hospital a tentar sobreviver ao teu destino de doente crónico. Tens sempre a face limpa, se não tivesse a memória de te ver a fazer a barba diria que nunca existiu, jurava que sempre tiveste cara de rapaz eterno. Tens umas mãos bonitas, herdei as minhas de ti como tanta coisa. Os olhos, o formato da face, este cabelo estranho que mais parece seda. Continuo a olhar e a ver o meu futuro, todas as tuas maleitas serão minhas também. Nunca herdei aquilo que sempre invejei em ti, a tua caligrafia única, a mais bela que alguma vez vi, olhar para a tua escrita pareceu-me sempre como contemplar uma obra de valor incalculável. Na altura em que praticava com afinco a criação de uma identidade, eu copiava a tua letra, imitava o teu f, o teu A, a forma perfeita como desenhavas os ~ por cima das letras. O máximo que consegui foi forjar a tua assinatura nuns papéis da escola mas falhei sempre a incorporação da tua caligrafia no meu punho. Ainda hoje a minha escrita não faz jus à tua arte. Quando me despeço de ti levo sempre o coração no futuro.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES