Terça-feira, 15 de Junho de 2010

 

Naquele dia o ar estagnou subitamente. Os pulmões fecharam para permitirem o corpo receber a dor industriosa. E quando o ataque amenizou ouviu-se um silvo de desespero, o oxigénio a entrar em golfadas violentas a lembrarem a subida à superfície depois de um mergulho demasiado longo. Naquele dia e naquele instante os dedos procuraram pelas teclas contactos de urgências, de pessoas competentes, do cheiro a formol, bisturis, seringas. É melhor vir, disseram do outro lado da linha e eu fiz a mala ao corpo, duas ou três coisas indispensáveis, coisas para o alimentar, coisas para o manter quente quando entrasse no grande monstro de tantos pisos e corredores cinzentos. Levei o corpo ao sítio correcto, dei entrada dele, apaziguei-o numa cadeira, a aguentar as dores sem um queixume, só aquele silvo horroroso com intervalos cada vez menores. Quando me pediram para apresentar o corpo e tiraram-lhe o líquido, e não conseguiram à primeira, nem à segunda nem à terceira, a seringa perfurava e falhava a veia, uma dor fundia na outra e eu pensava que não era possível perder tanto sangue e ainda estar vivo. E depois disse que não ia dormir, que era impossível ter assim dores e os sonhos atacarem-me mas ficou tudo escuro e eu desapareci no vácuo e até a mão – uma força férrea a prender o telemóvel clandestino –, até isso larguei. Eu não sabia que era possível dormir e sonhar quando estamos a morrer. Eu pensava que não era capaz mas até a mão abri. Muito mais tarde, quando tudo era uma lembrança difusa – uma cicatriz feia mas invisível, não-corpórea –, a veia continuava a doer. Uma coisa minúscula comparada com o disparate do corpo, mas com uma dor maior que toda a tragédia. E doeu muito e tanto quanto a memória permitiu, lembrando amiúde que havia um longo caminho a fazer para perdoar.



publicado por afonso ferreira às 02:41 | link do post | comentar

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