Uma noite estranha, quando saímos chovia copiosamente, atravessámos o edifício em direcção ao jardim à procura do carro. Para trás ficou uma inauguração, pessoas, imagens e sons, bebi dois copos e saí em passo de corrida a tentar acompanhar o teu ritmo frenético. Falas muito, dizes asneiras, podias ser meu pai e eu tenho ganho respeito a cada dia que passa. Tenho na cabeça um dilema, urge tomar decisões e para isso é necessário ter a certeza se o meu pensamento está correcto ou padece de verificação. És a pessoa perfeita para essa tarefa e digo-te, meu amigo, raramente ouço alguém, tens de ter algo especial em ti para que toda a minha atenção esteja contigo e pondere cada palavra que dizes. Aproveito a viagem pela cidade à mercê da tempestade tropical para fazer perguntas cirúrgicas com total economia de palavras, não quero dizer uma única a mais. Interessa-me neste momento ouvir. E tu dizes mais do que alguma vez poderia esperar enquanto conduzes como um maníaco pelas avenidas alagadas. Falas-me da obsessão que tem de existir para que um trabalho seja consistente. Indicas-me a obsessão específica de cada um dos artistas, dissecas as particularidades que conduzem trabalho a trabalho para que um dia se possa chamar obra. E dizes muito mais, o suficiente para compreender a essência da obsessão. Aquilo que procurei durante tanto tempo mas que nunca consegui nomear. Para isso teria de te conhecer, esperar a tempestade chegar, percorrer a cidade contigo e ouvir as tuas palavras. No momento em que desligaste o carro e disseste mais uma asneira, eu já tinha colocado tudo em causa.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
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