Entrei na casa e a primeira coisa que reparei foi no papel de parede. O homem está velho, está doente, está a pagar pelo que fez. É meu pai, mas de pai pouco teve. Fez-nos a vida negra, à minha mãe principalmente. Tu sabes, consegues imaginar. O 25 de Abril aconteceu estávamos na Madeira. Correu-lhe mal o dia. Foi apanhado na marginal. Foi apedrejado, teve de correr, de fugir, as pessoas a insultar, levou porrada. Não foi bonito. A minha mãe a ver, não mexeu um dedo. A vida dá muitas voltas. Com a revolução veio o divórcio e fomos à nossa vida sem olhar para trás. Passaram muitos anos e voltei à casa. Queria falar comigo, mas não tinha nada para me dizer. E, se dissesse alguma coisa, eu não poderia ouvir. Só conseguia olhar para o papel de parede a descolar. Aqui e ali faltavam bocados, o estuque a ceder. Quando a minha mãe vivia aqui a casa era bonita. Apesar de tudo.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES