Cortaram as ruas na cidade por causa da manifestação na Assembleia da República e isso fez-me perder tempo. Entrei no taxi e fiquei contente por ter ar condicionado. A manifestação foi o mote para o início da conversa. Talvez na casa dos sessenta e cinco, cabelos brancos, a cantarolar. Retrato do taxista do dia. A primeira frase deixou-me a olhar para a janela e a pensar que era só o que faltava, apanhar com um reacionário numa altura destas. Tenho o stress a manifestar-se nas veias, o dia não está a correr bem, estou farto, mesmo farto de tudo mas nada digo. Continuo a arrastar o corpo de reunião em reunião, de trabalho em trabalho, de taxi em taxi. Esta semana senti-me mal duas vezes, sempre dentro de carros, e agora este gajo, um reacionário a dizer que estes tipos das manifestações são uns miseráveis. A dizer isto a mim que estou com uma vontade louca de ir gritar palavras de ordem para um sítio qualquer. Eu só quero é gritar e mas fico em silêncio. Eu devia ter desconfiado quando ligou ao filho e chamou-lhe filhote. Eu devia ter desconfiado que ele era das pessoas mais inteligentes com que me cruzei na cidade. Este homem não é um taxista, é um actor a declamar o papel da vida de todos os dias, a gozar com este Portugal pequenino, a achincalhar com o discurso da taberna aos bancos de jardim, a oferecer a digestão numa bandeja de prata. Uma lição rara de humor e inteligência. A conversa continuou com a pensão da viúva do Salgueiro Maia, a CGTP, os cargos vitalícios. No fim da corrida conversávamos animadamente. A teoria dele de fuzilamento em forma de código de barras para poupar balas, a defesa de que ninguém desconfia o que foi a revolução. Nessa altura já eu ria descontrolado a ver os olhos dele pelo espelho retrovisor. No fim despediu-se dizendo se descobrir o que é isso do 25 de Abril avise-me!
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
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Caixa para pensar – Manuel Carmo
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CIDADES