Coisas estranhas que só acontecem aos domingos – passei duas horas sentado a uma mesa a prestar depoimento, e à minha frente, a fazer troça de mim, um dossier com a palavra 'cadáveres' na lombada. Aquilo era literatura pura, ou pior, incitamento ao crime, o que as minhas mãos sofreram para se portarem bem e não subtrairem o maldito dossier ao universo. Apeteceu-me ler aquilo como se de um livro tratasse, imaginei os casos, as histórias arrumadas em folhas A4, os crimes, os cadáveres que aparecem a boiar no Tejo.
O dia não nasceu de feição, parece que choveu enquanto a cidade dormia. Depois foram os pequenos-grandes problemas quotidianos a tratar, volta aqui, volta acolá, e lá se foi resolvendo enquanto as horas passavam. Tinha a convicção que o melhor era fugirmos do asfalto rumo ao mar, mesmo que a coisa não prometesse. Lá fomos pela marginal fora paralelos à linha azul enquanto imaginávamos explorar novos poisos. Junto ao mar decidimos ficar por ali, estender as toalhas de riscas azuis perto das miúdas que brincavam com os seixos num fortaleza castelo que crescia pedra a pedra. Enquanto lia sobre um verão não muito azul em Istambul há três décadas, tu adormeceste, e o tempo parou. Mais tarde, percorremos a pé o caminho até à vila, ida e volta em conversa amena. Encontrámos uma casa feita de paredes de vidro e areia e entrámos. Acho que não voltámos a sair.
Quando chega o domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.
As pessoas dividem-se entre as que odeiam semanas com dois domingos ou duas segundas.
Outra semana com dois domingos. Isto não pode fazer bem a ninguém.
O empregado do café não admite que o contradigam, o espaço está uma vergonha, é lixo por todo o lado, ervas espreitam a cada canto. O guarda diz que não, não, não é verdade, tem de lá ir ver, está tudo limpo e arranjado, um brinquinho. As duas idosas na mesa a bebericar chá estão com o dom da palavra, dantes é que era uma coisa bem feita, os jardineiros eram uns bêbados mas trabalhavam bem, era ver os homens tortos, pinga de manhã à noite, mas havia dálias, flores a perder de vista, os canteiros arranjados, as árvores esticadas em direcção ao céu. O empregado esfrega as mãos no pano da loiça sujo e pergunta por que raio não está a passagem para a torre aberta e o guarda defende-se, se eles para lá levam crianças de palmo e meio, naquele sítio onde não há protecção, à mercê dos caprichos do acaso, se surge acidente não há quem acuda, é tragédia certa. O empregado afirma que se afinal está tudo limpo e arrumado, se não aparecem ervas a toldar a vista, então está bem, está muito bem, mas o que está mal é o preço, é preciso deixar os anéis e os dedos para entrar, está mal, está mal. O castelo é património de todos, ó que raio. A mulher de rugas a tiracolo não se resigna, dantes via dálias, muitas dálias e pavões, eram uns bêbados mas nas fontes e bicas corria água com prazer.
Uma semana com dois domingos não pode ser coisa boa.
... depois do mundo acabar só podia ser um domingo. raios parta.
"Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros.
[...] Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo."
Álvaro de Campos
As pessoas dividem-se entre as que odeiam segundas-feiras e as que não suportam domingos.
Eram as sete e meia da tarde. E eu sorri-lhe ao ver que me sorria, mas fi-lo apenas por educação. Sorri, mas era me impossível esquecer que ainda há meia hora estava angustiado como nunca no terraço ao lado,
na minha casa, com os nervos completamente destroçados pelo domingo. Os domingos são horríveis. Se ainda por cima são de Agosto, a combinação não pode ser mais terrífica. E embora venham e vão, isso de pouco consolo serve, pois voltam sempre. Ainda que, diga-se a verdade, por muitos domingos de Agosto que voltem, dificilmente encontrarão um pior do que hoje, nunca voltará a ser tão pesado o ar nem estarão tão vazias as ruas desta povoação como estavam hoje às quatro da tarde quando em minha casa, sentado no meio do terraço que dá para o normalmente – hoje a esta hora deserto – concorrido Passeo del Mar, senti um tremor estranho, seguido de uma dificuldade tão enorme de mover-me que até me senti incapaz de recorrer a este caderno dos três tucanos. (...)
Longe de Veracruz de Enrique Vila-Matas não é um livro inesquecível nem sequer será lembrado como um marco nas minhas leituras, mas é, talvez, se a memória não me falha, o livro que contém as melhores descrições de domingos que já alguma vez li. Sem ser planeado, comecei a ler precisamente num domingo quente à beira mar e conto chegar à última página num próximo.
Que fará aí esse homem. Que fará disfarçado de planta. Na realidade talvez tudo isso não tenha nada de estranho ou de especial e a culpa seja simplesmente dos domingos, que são horríveis. São muitas as pessoas que, por causa disso, os acabam transtornadas, acabam muito mal os domingos. São horríveis, sim, os domingos...(...)
Mais um domingo despachado.
Uma semana sem internet. 2h40 de vários telefonemas depois, até já tratar os técnicos da assistência pelo nome próprio, a coisa resolve-se. Mudar para o canal 13, muito mais elitista e sem tráfego, uma espécie de domingo a olhar para o mar. Isto não poderá deixar de se reflectir nos posts.
A esticar horas e minutos para prolongar o dia.
Uma espécie de domingo perfeito, Pedro Rolo Duarte.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES