Combinámos encontro no centro da cidade, manhã cedo, com o calor a morder-nos os calcanhares e os pombos balofos a cirandar no céu. Para Chinatown é preciso sair do perímetro central e conduzir para norte, o carro a arranhar o alcatrão, nós a assobiar música de circo. Chegando é só escolher o nome mais inspirador, Êxito completo ou Capital esplêndido, e entrar. É o reluzente optimismo amarelo na sua melhor manifestação – começa na escolha do nome, continua no gato dourado de pata no ar a abanar à porta das lojas e acaba num desejo desenfreado de planearem singrar num país no fim do mundo sem saberem dizer uma única palavra. Há de tudo e para todos os gostos. Bicicletas com motor, detergente Lagarto, relva sintética, papel autocolante a fingir mármore, sombrinhas de renda, bonecos a pilhas, relógios com música e flores de plástico. Encontro raquetes electrificadas às dezenas e por pouco não escorreguei na tentação de trocar a minha por um modelo mais recente. Ao entrar num restaurante sou atingido por um soco no estômago, afinal não fazia ideia do que era a comida chinesa, tanto tempo enganado. Sinto-me tão estrangeiro, o dono do restaurante não fala a minha língua e eu não falo chinês, o rapaz do armazém nem a palavra obrigado conhece. No meio da minha errância encontro o homem dos extintores e penso que é ele o meu salvador, que terá um mapa à espera da minha desorientação linguística. Indica-me as únicas pessoas que falam português, por acaso apenas mulheres, mas uma não a encontro e a outra fala um português fraco arraçado de italiano. Há um labirinto intransponível em Chinatown, saio de mãos à abanar sem conseguir atingir o meu objectivo. No regresso à cidade planeio novas investidas. Hei-de vencer ou perecer, não admito menos do que isso.
A Letónia vendeu recentemente uma cidade inteira que foi usada como base militar soviética no passado. A cidade deserta, conhecida como Skrunda-1, foi vendida em leilão e arrematada por uma empresa russa, Aleksejevskoje-Serviss por US$ 3 milhões, cerca de dez vezes o preço esperado. A cidade inclui 45 hectares de terra, dez prédios de apartamentos, duas casas nocturnas, um shopping center, um jardim-de-infância, um circo de pulgas, um quartel e uma sauna. Situada a 150 km a oeste de Riga foi abandonada depois dos soldados russos abandonarem a Letónia, em 1994, depois da desintegração da União Soviética. Skrunda-1 era um povoado fechado, que não aparecia nos mapas soviéticos porque era usado como base para radares antimísseis. A base foi demolida no final da década de 90. Foi depois da demolição da base que alguns dos habitantes recusaram-se a deixar a cidade e planearam novos edifícios no local. As construções só foram descobertas depois do leilão. No total foram descobertos 85 km de construção subterrânea com vários edifícios, estufas, uma clínica de fertilidade, uma biblioteca com dez pisos e uma universidade. A maioria dos habitantes continuou a agir como se estivesse em plena guerra fria criando para o caso de um eventual ataque cinco saídas subterrâneas para a floresta em redor. A população ascendia às 5500 pessoas e era auto-suficiente em termos de alimentos e energia. Parte delas desenvolveram um dialecto próprio recusando-se a falar a língua antiga. Por agora as notícias têm sido escassas sobre o futuro de Skunda-1.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES