Hoje sonhei com fruta. Muita fruta e muitas cores. Caixas de madeira pesadas e compridas que só com três homens a carregarem era possível deslocar. Vi um cacho estranho, os frutos pareciam piões e alguns eram azuis. Eu vestia um fato completo roxo e fiquei muito amargurado quando uma das caixas entornou. Se calhar também foi um sonho erótico.
Esta noite enquanto oscilava entre este mundo e o outro no meu sono pouco profundo, tu vagueavas pela casa acordado na tua ronda de vigília aos problemas do mundo. Aproximaste-te da cama com um livro na mão e disseste. Não estás a ver a solução porque estás demasiado próximo da história. Tu sabes que o arquivo não tem salvação, deixa-o ir, há-de ser consumido no incêndio. Tens de ir à praça novamente. Volta à igreja de São Domingos, é ali que está o final que procuras. O homem espera por ti à porta. Já sabes o que tens de escrever. Salva o homem e o miúdo. Precisas de colocar corpos no incêndio no vosso lugar para que possam partir em paz. Depois ficaste em silêncio à espera que adormecesse. Quando acordei recordei com nitidez as tuas palavras enviadas de tão longe, um oceano de distância, e caminhei pela cidade em direcção à igreja.
Entra no velho teatro, passos largos, apressados, atravessa os corredores decrépitos, a patine a troçar dela, adivinha de que cor as paredes estão pintadas. Agora não tem tempo para adivinhas de estuque moribundo. Está atrasada, o ensaio já começou. Espalha-se ao comprido nos três degraus na entrada do camarim. Levanta-se, apanha os bocados de si mesma espalhados, atarraxa a perna esquerda com esforço, troca a roupa que traz pelo vestido, ata o laço nas costas, penteia o cabelo, sufoca os caracóis com ganchos, pinta-se como uma boneca espanhola e assim já a reconhecem: aqui está a Estela. Lá vai ela a correr para o palco.
– Cuidado com os degraus, Estela!
Cena III. Estela morreu. Os pulmões chiam, o coração chocalha o sangue, as pestanas abanam, o fígado dói, e, no entanto, está morta. Estela, ouve a música, é a tua preferida. Não queres dançar? Estela lê o telegrama com as más notícias mas não reage, Estela olha para o amante a soluçar, recebe os seus abraços mas nada sente. O urso do tambor parado com as baquetas no ar, o encenador a tirar a pala do olho esquerdo para ver melhor, os actores a aproximarem-se no palco e todos a gritar em coro:
– Esteeeelaaa!
Estela segura uma pequena caixa de madeira onde está o seu coração mas perdeu a chave. Olha perplexa para a mulher à sua frente de vestido, cabelo apanhado, pintada como um palhaço.
– Mas quem é esta? Quem é esta dupla de mim? pergunta.
Hoje tornei a sonhar com o rio. Já sei que o dia não vai correr bem. Fiz de propósito e fui para o trabalho pela marginal. Gostava de te esquecer definitivamente, por vezes penso que consegui, mas depois volto a sonhar com o rio, com o barco, contigo. Fui muito feliz nessa altura e não o percebi. Era novo e era estúpido e tive medo. Lembro-me de ti, encharcada até aos ossos, o cabelo em desalinho mas tão feliz. Usavas umas sandálias azuis de tiras e o meu casaco que mais parecia uma capa de tão largo que estava. Agora, passado tantos anos, torno uma e outra vez a sonhar com essa viagem, essa tarde. Encontro-te na rua com as crianças e volto a ser assaltado pelos mesmos fantasmas. Era comigo que devias estar, estes deveriam ser os meus filhos. Agora é tarde demais.
Percorreu o pátio da villa em passos lentos e descontraídos por entre o bando de crianças a correr. O sol inundava a casa grande de chão de blocos de pedra irregular. Entra na casa pelas portas altas de madeira e sente a frescura no interior. A villa está repleta de convidados, é preciso confirmar se está tudo pronto para a festa. Alguns ainda estão nos quartos a tentar fugir ao calor intenso. Pequenos grupos de pessoas conversam em voz baixa ao sabor do long drink. Entra na cozinha e ouve o riso das crianças no pátio e passos no andar de cima. Decide verificar se a comida está pronta. Prepara um gin tónico com muito limão e fica por instantes na porta a contemplar as bugavílias e o mediterrâneo no horizonte. Sente o calor tépido, as pequenas correntes de ar entre o seu corpo e o vestido de musseline branco com pequenas flores.
Vai tudo correr bem, pensou. Quando volta à cozinha um pequeno descuido causa o estilhaço do copo no chão de pedra. A bebida escorre pelo vestido e ela sente o líquido gelado nas pernas. Varre os despojos do acidente e atravessa novamente o pátio em direcção ao quarto. Passa por um estranho trio visivelmente embriagado e sente o vestido a secar e uma longa mancha amarela a surgir no tecido. Contorna o pátio e entra na casa contígua. Precisa de ir ao quarto no átrio de entrada trocar de roupa. A porta está apenas encostada e ao entrar acende um cigarro. Encontra o que quer, um vestido verde água. Passa pela cama de dossel e percebe que A. está deitada. Não simpatiza particularmente com ela, em tempos tiveram de trabalhar juntas e não ficaram boas recordações. Não a vê, os panos estão corridos, percebe que está acompanhada e apenas murmura
"Sou eu, desculpa, vim buscar uma coisa, vou sair já."
Lá fora as pessoas falam, comem, riem. Ao sair ouve a voz dele na cama de dossel
"Nem percebeu que era eu. Aliás, durante estes anos todos, nunca percebeu nada".
O seu coração pára de bater, os três passos que a separam da saída são vinte anos passados ao lado daquelas duas frases. Volta atrás com passos bruscos, fecha as portadas da janela com grades, cerra os cortinados, atira o cigarro para cima dos panos da cama, sai no momento em que a primeira labareda irrompe e tranca a porta à chave.
Ontem enquanto esperava na rua por uma mesa no restaurante e sonhava com um tapa-orelhas, voz amiga relatou o sonho da última noite ainda em angústia com a acção do mesmo. Depois de escutar atentamente apercebi-me que ali estava a génese de um guião cinematográfico perfeito. Uma história fabricada no inconsciente mas com todos os elementos no lugar certo. Personagens, local, acção, violência psicológica, moralidade (ou falta dela), final eloquente. Um autêntico romance, ou pelo menos um conto, depende do número de palavras que é necessário para o registar devidamente. Esta história dava um post. E dá mesmo. A partir de hoje está aberta mais uma tasca no blog. Se sonhar, envie para umhomemnacidade@gmail.com as linhas gerais do seu sonho. Deste lado prometemos um conto em troca.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES