Vou só ali dormir um par de horas e já publico o último capítulo.
Para os muitos fãs da famosa série da CBS, a notícia é recebida em êxtase. Depois de muitos rumores ao longo dos anos, Dallas vai mesmo regressar e com o elenco original.
Não há sítio como a soap opera para fazer regressar personagens do além. Eles morrem sem redenção, levam tiros, sofrem cancros, suicidam-se, são enterrados. Pensamos que nunca mais pomos a vista em cima deles. Quando damos por ela, começa a nova série e o Bobby protagoniza uma aparição na banheira.
(...) Sentou-se ao computador com a barba de três dias e de peúgas. [panorâmica da sala de estar deprimente, uma televisão ligada sem som, um estendal com roupa a secar] Começou a ronda no Facebook pelas fotografias das amigas dos amigos. Enviou indiscriminadamente a mesma frase dezoito vezes. "Olá. Parece-me que temos muito em comum." [close up do monitor, som das teclas do computador] Amigável, breve e suficientemente misterioso, um achado de frase. A experiência dizia-lhe que uma em vinte mordia o isco. Esperava ter sorte esta noite. Uma noite de domingo insuportável, solitária e triste. Na verdade não variava muito de todas as outras noites. Tinha recebido uma mensagem de resposta da ronda anterior, mas descobrira entretanto que era casada, o que era pena porque era muito gira. Decidiu mesmo assim que daria uma resposta. Continuou a ver perfis. Deteve-se numa fotografia, não era muito atractiva mas o currículo e os amigos compensavam esse pormenor. Enviou-lhe a mesma mensagem. A coisa boa das feias é que costumam responder sempre.
1º capítulo
De todas as influências na escrita do primeiro capítulo da telenovela, o Dallas segue na dianteira. Pelo argumento? Pela tonta da Sue Ellen? O maquiavélico J. R. Ewing? Nada disso. Um choque eléctrico é o culpado. Num sábado à noite, tinha eu menos anos que os dedos de uma mão, enquanto a minha família instalava-se confortavelmente na sala para assistir à soap opera, decidi espetar dois dedinhos numa tomada eléctrica. O choque foi de tal ordem que ainda hoje tenho sonhos com a música do genérico. Fiquei tão zonzo da descarga que a única acção possível foi desmaiar, perdendo para todo o sempre um episódio importantíssimo para a compreensão da saga. Felizmente agora existe o You Tube, que como esta manhã alguém afirmou, é provavelmente o sítio mais democrático de todos (P., esta é para ti). Não ter seguido imediatamente para as urgências é uma ideia tão idiota que só tem paralelo na vez em que, já adulto, sofri um acidente épico na Avenida 24 de Julho e decidi adormecer com um traumatismo craniano mais do que certo. Felizmente desse acidente aparatoso espero aproveitar a influência necessária para o primeiro capítulo de um romance.
O primeiro capítulo da telenovela está pronto e seguiu o seu destino. Seis envelopes cuidadosamente selados e entregues ontem à noite em cerimónia solene. Já recebi algumas críticas positivas. Muitas gargalhadas também. Vamos respirar um pouco e atacar o segundo capítulo.
A inspiração aparece nos momentos mais inesperados. Foi necessário relembrar o filme A Festa com uma dinamarquesa que fala português do Brasil, dormir apenas três horas e um fim-de-semana agitado em termos sociais para encontrar uma solução para a tão malograda telenovela. De madrugada, numa festa à pinha, tive uma pequena epifania, certamente embalado pela excitação avulsa no bar com bebidas à descrição, e recordei a noite em que fui à pior festa de natal que recordo. Um momento de convívio que deixou-me à beira de trucidar renas no caminho para casa. Felizmente, como o evento descrito decorreu no último natal recordo com vivacidade os pormenores. Parece-me perfeito como momento catalisador de tensão para captar a atenção dos espectadores. Embora seja necessário mais uma vez diminuir a idiotia de certos diálogos reais no intuito de parecerem credíveis e acrescentar mais umas características arrepiantes – o protagonista não fecha a porta da casa de banho e não corta as unhas – para disfarçar a verdadeira intenção do relato desse episódio: nunca ir a festas de natal de amigos dos amigos. Para fretes já bastam os nossos.
The Guiding Light debuted as an NBC radio serial on January 25, 1937
A estupidez. Um factor importante na construção do enredo.
Para que a telenovela cative o maior número de espectadores a trama inicia com o envio frenético de mensagens do protagonista em todas as direcções. Estilo roleta-russa. Confesso que neste capítulo inspirei-me no título de mais um livro de Dostoiévski - O Jogador. O problema agora consiste em dar o balancé, a cadência perfeita para que o espectador não mude para a Quadratura do Círculo. Assim que conseguir transformar mensagens do Facebook e telemóvel num diálogo estimulante mas ainda assim medíocre, tenho a certeza que escreverei os outros capítulos de uma assentada. Ideias não me faltam. As linhas mestras estão decididas: o funeral será convocado por chat, as relações amorosas finarão todas por post-it, aos falsos amigos espera-lhes a glória no cabeleireiro do bairro.
Eavesdrop on almost any conversation in real life and there’s a lot going on. Close your eyes and it will become obvious that someone is leading and someone is following; on person gets to change the subject and the other one happily follows. One person may be listening while the other hardly hears what the other says. Even if they’re discussing something neutral such as where to meet, someone gets the final veto. Conversations are like a seesaw – and it’s very unusual for it to be pitching back and forth in smooth harmony. Whenever people talk – about anything at all – they are revealing something deeper about how they respond to each other.
Foi uma conjugação de coisas. A conversa sobre as scuts, os dois de óculos escuros na marginal a caminho da praia. Eu a perceber a extensão do negócio do ex-assessor. O quê? Também tenho de comprar o aparelho? Mas eu não vivo no Norte! O gajo é um génio. Depois foi a entrevista ao Alfredo Casimiro na Pública onde relata todo o caminho percorrido até descobrir aos trinta anos que era milionário. Ao fim do dia, vínhamos nós na fila morna em direcção à capital, tive uma epifania enquanto olhava para o segundo acidente. O meu caminho não está na literatura, não passa por escrever para a gaveta, ter fome e correr o risco de viver debaixo da ponte. Eu quero ser rico, bem sucedido, condecorações do presidente e essas tretas todas, um vulto na cultura, que os gajos que me bateram na escola primária vomitem de inveja. Acho que estão a perceber a ideia. Para isso é necessário encontrar a minha própria scut. O mais complicado por vezes é ter a ideia, uma vez definida, o objectivo parece de uma simplicidade atroz. Nem sei como é que nunca me tinha ocorrido isto. Vou dedicar-me às telenovelas e conquistar o meu quinhão. Ao chegar à cidade já tinha engendrado o primeiro esboço do argumento. A personagem principal é o anti-herói por excelência. Terá doses cavalares de falta de sexo, diálogos de chorar por menos, facadas dos amigos a torto e a direito, amores platónicos degradantes, medicação assistida e uma previsibilidade em todo o argumento do início ao fim que não deixará o espectador indiferente. Conto matar a personagem principal a meio da telenovela, com direito a um funeral rasca e poucos choros. A forma como vou continuar a saga sem o palhaço é o twist perfeito para que ninguém se esqueça da minha obra. Estou a pensar roubar o nome O Idiota ao Dostoiévski – é curto e fácil de lembrar, afinal idiotas há muitos e é raro não conhecermos um ou dois, senão muitos. Primeiro capítulo em preparação.
a minha língua é a pátria portuguesa
coisas extraordinárias do gabinete
grandes crimes sem consequência
pequenas ficções sem consequência
LEITURAS
Agora e na hora da nossa morte - Susana Moreira Marques
Caixa para pensar – Manuel Carmo
Night train to Lisbon – Pascal Mercier
CIDADES